Na longa seara cinematográfica construída por Woody Allen ao longo de quatro décadas de trabalho, "Desconstruindo Harry" é lembrado com frequência muito baixa. Verdade seja dita, não é dos trabalhos mais celebrados desse grande diretor, mas tem lá suas qualidades.
O cerne das questões levantadas por Allen nesse filme de 1997 são as neuroses do ser humano, tema que se apresenta sobre diferentes facetas (ou não) na sua extensa obra. Assumindo para si a persona desajustada e inconformada com o mundo ao redor, ele dá vida a Harry Block, um escritor que compra brigas com todos os amigos e parentes, transformado-os em seus desafetos em três tempos. O motivo é simples: ao retratá-los da maneira como bem entende em seus livros, gera desconfortos e lança na cara de todos a verdade que se deseja encoberta.
De alguma forma, esse é o pretexto para que sejam debatidas na tela todos os elementos que compõem o arsenal de piadas inteligentes de Allen, que não abre mão de um elenco estelar para dar vida às suas criações (ou de Harry Block), num constante jogo dialético. É bastante curioso acompanhar o desfile de personagens criados pelo diretor, que têm, cada qual em um determinado momento, seu peso na história.
Entre outras situações com um quê e hilariantes, está a perplexidade de uma das ex-mulheres de Harry, Joan, vivida por uma Kirstie Alley no auge do seu talento e beleza, com o comportamento promíscuo que o escritor está tentando imprimir no filho que nem chegou à adolescência. A reação histérica de Joan à atitude do ex-marido leva a uma das cenas mais divertidas de todo o longa.
As boas sacadas do roteiro, o que o filme tem de melhor, estão no retrato contundente de seus personagens, que não são planos, podendo, a qualquer momento, surpreender com suas ações. E também há uma mistura de real e ficcional que balança as crenças do espectador sobre o que está acontecendo ou o que aconteceu, de fato, na história. Essa brincadeira atravessa todo o filme. Os diálogos afiados, outra marca registrada na filmografia alleniania, também aparecem por aqui, revestidos de uma ironia finíssima e um humor cortante.
À semelhança de seu filme anterior, "Todos dizem eu te amo", e de vários dos filmes de Robert Altman, em "Desconstruindo Harry" Woody Allen realiza um filme-painel da diversidade humana, e trata da dificuldade que todos nós temos de encarar nossos defeitos, sem camuflá-los sob máscaras ou concessões hipócritas. Tudo, claro, sob um duplo filtro - ou, talvez, um único -, o de Allen e o de Harry, pois é através do olhar deles que enxergamos cada tipo em cena. Nesse detalhe interessante está um outro grande acerto do longa, que, entretanto, nem sempre captura essa característica do ser humano de forma satisfatória. Fica a impressão de que o enredo poderia ter sido mais bem acabado, talvez por haver um certo excesso de personagens na história.
Entretanto, não é nada que comprometa o conjunto geral da obra, que tem um punhado de referências eruditas, bem ao gosto sofisticado do cineasta, que dialoga, inclusive, com a maior obra da literatura italiana, e também, universal, "A divina comédia" de Dante. Isso acontece na cena em que, atordoado pelos passos "errados" que vem dando, Harry desce ao inferno e conhece o que há nessa terra incógnita. Lá está um de seus personagens, vivido por um Robin Williams abusando do escracho.
Vários são os destaques do elenco, como Demi Moore na pele de Helen, uma das criações de Harry. Ela é a personificação da sensualidade nas cenas em que aparece enfeitando os devaneios de Harvey, papel do então garoto Tobey Maguire, outra boa escolha do diretor para o papel. Também não se pode deixar de citar Billy Crystal, inspiradíssimo dando vida à figura enigmática de Larry, que tem peso ainda mais relevante na narrativa.
Para não-habituados ao universo de Allen, "Desconstruindo Harry" é uma bela oportunidade de penetrar nesse mundo particular daquele que é um dos nomes mais geniais do cinema mundial, que inscreveu seu nome no panteão dos grandes diretores através de sua criatividade e humor incomum para lidar com a banalidade do cotidiano, transformando o trivial em extraordinário.
13 de jan. de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário