Para quem gosta de acompanhar bons filmes vindos do território alemão, uma grande indicação é o ótimo "Contra a parede" (Gegen die Wand, no original), dirigido com competência e traquejo por Fatih Akin. Ele é habilidoso ao se propor - e conseguir, por inúmeras justificativas -, pincelar um retrato dos conflitos enigmáticos entre coração e razão por meio de seus protagonistas e a teia de incertezas na qual ambos se envolvem, à medida em que a trama se desenrola.
Os personagens principais são Cahit (Birol Ünel) e Sibel (Sibel Kekilli), que se conhecem e se aproximam numa situação um tanto atípica. Ele é um alemão com raízes turcas, e ela tem uma família conservadora demais para seu espírito libertário, o que a leva a ter uma ideia quando o encontra. Sibel propõe casamento a Cahit, unicamente como forma de escapar com legitimidade das regras sufocantes de seu clã.
O que, para ela, representa desde o começo a saída perfeita, para ele surge como um absurdo. Cahit está deprimido por não estar mais com sua namorada, o que já o levou a uma atitude de desespero, que dá significado literal ao título do filme. Contudo, aos poucos, ele se dobra e compra o plano de Sibel. Para tanto, forja inclusive uma família turca, ajudado por alguns amigos, companheiros de libações. Em pouco tempo, eles estarão casados, selando um pacto de conveniência que não os impede de seguir com suas vidas de antes. Portanto, Sibel permanece como uma devoradora de homens, indo a noitadas e colacionando parceiros. Sua relação com Cahit é de uma ternura contida, própria dos que se conheceram em circunstâncias inusitadas. Em uma passagem do filme, ela quase chega a fazer sexo com ele, mas recua, pois acredita que a consumação do casamento indicaria que um passaria a ser, de fato, do outro, definitivamente. A visão da personagem sobre o amor e o prazer é dissecada a partir desse ponto, mostrando uma perspectiva parecida com a de muitas jovens mulheres contemporâneas e, mais ainda, com a de muitos homens, tidos como práticos por natureza.
Até então, a narrativa de "Contra a parede" segue num rumo aparentemente previsível. Mas tudo muda à medida em que Cahit começa a desenvolver uma paixão por Sibel, que não corresponde. Esse sentimento o leva a cometer uma loucura, quando ele decide se vingar de um dos parceiros da esposa. Desse ato impulsivo, virão consequências altamente prejudiciais para eles, ainda mais para Cahit. Com a separação, inevitável, virão novos rumos em suas vidas, que pegarão o espectador de surpresa. O jogo engendrado por Akin começa a ganhar contornos mais instigantes após esse momento do filme, já que quem esperava pelo florescimento de uma história de amor tem suas expectativas lançadas por terra sem piedade. Akin não é um diretor de muitas concessões, e aqui não há espaço para casalzinho apaixonado. Muito pelo contrário. Por isso, quem quer ver mais um romance surgido de adversidades em comum pode ficar um tanto decepcionado, pois esse não é o interesse do cineasta.
Muito do encanto do filme está nessa quebra de expectativas, na mudança de rumo tomada pelos protagonistas, que caminham cada vez mais para lado opostos. Contar mais do que acontece é tirar a graça de um conto moderno sobre os descaminhos da vida, que prega peças o tempo todo. A câmera de Akin flagra a dissolução de certezas, evidenciando que nada é perene, e que cada lado envolvido numa relação amorosa ou de conveniência pode estar numa sintonia bastante diversa do outro lado.
Alguns detalhes da história são dados da vida pessoal do diretor. Assim como Cahit, Akin tem ascendência turca, e a intenção de filmar o enredo de "Contra a parede" nasceu de uma experiência vivida por ele de verdade. Uma jovem, certa vez, lhe propôs um casamento de fachada para que pudesse se ver livre das "amarras" que a prendiam à sua família. Acreditou que esse imbróglio daria um bom filme, e tinha toda a razão. Seu roteiro engenhoso e centrifugador de lugares-comuns endossa a tese de que o longa não é perda de tempo.
Vale destacar, ainda, a trilha sonora excepcional, e perfeitamente encaixada aos passos dados por Cahit e Sibel em sua trajetória tortuosa. Elas são cantadas de forma meio à parte, por uma cantora sensacional, acompanhada de uma banda que executa em seus insrumentos exmplares preciosos da música turca. Por toda essa conjunção de fatores, "Contra a parede" merece um lugar na ribalta de filmes de diretores de talento e com uma boa históri para contar.
27 de jan. de 2010
23 de jan. de 2010
Conversa entre amigos em "Sobre café e cigarros"
Certos diretores, ao ecoar de seus nomes, logo são associados ao termo cult, o que pode ser tanto pejorativo quanto elogioso, a depender do gosto de quem está classificando. Jim Jarmusch, representante do cinema independente, com muita facilidade se enquadra em tal definição, a qual também pode ser limitadora.
Entretanto, em "Sobre café e cigarros" o adjetivo é a melhor escolha para comentar a proposta que Jarmusch apresenta. O filme é uma compilação de onze curtas-metragens rodados durante vários anos que, juntos, compõem um mosaico interessantíssimo da diversidade de assuntos que pode pairar entre amigos, e que exala um forte aura cult. Para todos eles, Jarmusch abriu mão das cores, como já fizera antes em "Estranhos no paraíso", exercitando seu estilo e fazendo um recorte da realidade ao optar pelo preto e branco.
À sua frente, um elenco primoroso se encarrega de interpretar a si mesmo, em sua maioria, ou de dar vida a personagens no mínimo curiosos e dignos de uma galeria de achados imperdíveis. A lista de atores, ou de colaboradores, por assim dizer, é extensa e eclética. Estão lá Cate Blachett, genial como primas que mais parecem gêmaeas univitelinas, Bill Murray, em mais uma composição impecável, além de Iggy Pop, Isach de Bankolé, Roberto Benigni, Steve Coogan e Alfred Molina. Os dois últimos, aliás, estão no pirmeiro de todos os curtas, ou seja, o mais antigo, filmado ainda nos anos 80.
O que une os onze curtas é um detalhe simples: entre um gole de café e uma tragada num cigarro, pessoas comuns conversam sobre fatos corriqueiros da vida, e alguns outros nem tanto. Entre os assuntos abordados nos vários segmentos do filme, estão: Paris nos anos 20, o modo correto de se preparar um chá inglês, o uso de nicotina como inseticida, picolés de cafeína, Elvis e Costello, as invenções de Nikola Tesla, e vários outros. Tudo envolto em um clima de agradável camaradagem, de conversa jogada fora entre amigos que se conhecem há tempos.
Basicamente, "Sobre café e cigarros" está alicerçado nessa combinação simples e eficaz. O uso de preto e branco também funciona metaforicamente, já que remete ao preto do café e ao branco do cigarro, coadjuvantes em todos os curtas, invariavelmente. Nos diálogos inspirados dos personagens, Jarmusch faz um apanhado instigante de elementos do cotidiano, lançando um olhar acurado sobre coisas que se fazem e se dizem quase automaticamente, sem que se perceba. O espectador que espera algo de extraordinário ao assistir ao filme pode se desapontar. Não há grande inventividade no que o diretor apresenta. Na verdade, a inovação não está na forma, e sim no conteúdo.
A atmosfera de intimidade entre velhos conhecidos é reforçada o tempo todo, e alguns trechos de longas acabam alcançando mais brilho que outros. Não deixa de ser um filme com estrutura episódica, em que o maio clichê é a irregularidade. Porém, em "Sobre café..." essa desagradável característica é quase incipiente. Há que se destacar o curta com Bill Muray, cômico na medida exata na pele de um atendente, e no trecho protagonizado por Vinny Vella e Vinny Vella Jr., ótimos como pai e filho em comentários agridoces sobre assuntos do dia a dia. É nesse caminhar paciente que surgem a graça, o inesperado, o triste, o bizarro e o divertido.
No geral, tudo o que se vê na tela é uma grande celebração da vida e de acontecimentos simples, que movem a existência de cada um. Ao retratar personagens com uma forte tendência a verborragia, e não se preocupar tanto com ação, Jarmusch acaba distanciando seu filme do público comum, deixando-o como um prazer do qual usufruem pequenas plateias. Seja como for, observar o lento desenvolver das linhas da vida, sem a pressa que alucina, também pode valer muito a pena. E "Sobre café e cigarros" entra nessa proposta, sevindo para refletir e também como um ótimo exercício de contemplação.
Entretanto, em "Sobre café e cigarros" o adjetivo é a melhor escolha para comentar a proposta que Jarmusch apresenta. O filme é uma compilação de onze curtas-metragens rodados durante vários anos que, juntos, compõem um mosaico interessantíssimo da diversidade de assuntos que pode pairar entre amigos, e que exala um forte aura cult. Para todos eles, Jarmusch abriu mão das cores, como já fizera antes em "Estranhos no paraíso", exercitando seu estilo e fazendo um recorte da realidade ao optar pelo preto e branco.
À sua frente, um elenco primoroso se encarrega de interpretar a si mesmo, em sua maioria, ou de dar vida a personagens no mínimo curiosos e dignos de uma galeria de achados imperdíveis. A lista de atores, ou de colaboradores, por assim dizer, é extensa e eclética. Estão lá Cate Blachett, genial como primas que mais parecem gêmaeas univitelinas, Bill Murray, em mais uma composição impecável, além de Iggy Pop, Isach de Bankolé, Roberto Benigni, Steve Coogan e Alfred Molina. Os dois últimos, aliás, estão no pirmeiro de todos os curtas, ou seja, o mais antigo, filmado ainda nos anos 80.
O que une os onze curtas é um detalhe simples: entre um gole de café e uma tragada num cigarro, pessoas comuns conversam sobre fatos corriqueiros da vida, e alguns outros nem tanto. Entre os assuntos abordados nos vários segmentos do filme, estão: Paris nos anos 20, o modo correto de se preparar um chá inglês, o uso de nicotina como inseticida, picolés de cafeína, Elvis e Costello, as invenções de Nikola Tesla, e vários outros. Tudo envolto em um clima de agradável camaradagem, de conversa jogada fora entre amigos que se conhecem há tempos.
Basicamente, "Sobre café e cigarros" está alicerçado nessa combinação simples e eficaz. O uso de preto e branco também funciona metaforicamente, já que remete ao preto do café e ao branco do cigarro, coadjuvantes em todos os curtas, invariavelmente. Nos diálogos inspirados dos personagens, Jarmusch faz um apanhado instigante de elementos do cotidiano, lançando um olhar acurado sobre coisas que se fazem e se dizem quase automaticamente, sem que se perceba. O espectador que espera algo de extraordinário ao assistir ao filme pode se desapontar. Não há grande inventividade no que o diretor apresenta. Na verdade, a inovação não está na forma, e sim no conteúdo.
A atmosfera de intimidade entre velhos conhecidos é reforçada o tempo todo, e alguns trechos de longas acabam alcançando mais brilho que outros. Não deixa de ser um filme com estrutura episódica, em que o maio clichê é a irregularidade. Porém, em "Sobre café..." essa desagradável característica é quase incipiente. Há que se destacar o curta com Bill Muray, cômico na medida exata na pele de um atendente, e no trecho protagonizado por Vinny Vella e Vinny Vella Jr., ótimos como pai e filho em comentários agridoces sobre assuntos do dia a dia. É nesse caminhar paciente que surgem a graça, o inesperado, o triste, o bizarro e o divertido.
No geral, tudo o que se vê na tela é uma grande celebração da vida e de acontecimentos simples, que movem a existência de cada um. Ao retratar personagens com uma forte tendência a verborragia, e não se preocupar tanto com ação, Jarmusch acaba distanciando seu filme do público comum, deixando-o como um prazer do qual usufruem pequenas plateias. Seja como for, observar o lento desenvolver das linhas da vida, sem a pressa que alucina, também pode valer muito a pena. E "Sobre café e cigarros" entra nessa proposta, sevindo para refletir e também como um ótimo exercício de contemplação.
20 de jan. de 2010
"Amor em cinco tempos": a finitude dos sentimentos
Entre os diretores mais celebrados do cinema francês atual, está Frnaçois Ozon, um jovem realizador inventivo e interessado em perscrutar as chagas da vontade humana sob diferentes vieses. A cada filme, sua câmera observa o outro de um ângulo ora cômico, ora semitrágico, resultando em obras poéticas e desprovidas de qualquer traço de banalidade. Seu discurso aparentemente superficial encobre um espectador atento da natureza do homem. Juntamente com Woody Allen, seu polo aproximante na cinematografia americana, Ozon produz quase um filme por ano, e flagra costumes e ideologias com a argúcia de um bom conhecedor das mazelas de cada um de nós.
Toda essa introdução serve para pontuar sua importância no cenário artístico atual, em que pese sua não unanimidade entre os críticos. Mas esse já é um outro detalhe não tão pertinente... Christophe Honoré, um de seus compatriotas e contemporâneos, não goza de melhor prestígio, embora seja igualmente talentoso.
Em "Amor em cinco tempos", filme de título autoexplicativo, o grande achado é lidar com as perdas e ganhos de um casal pelo prisma da não-linearidade. O tema não poderia ser mais universal e de fácil identificação, o que é uma das explicacações para que o longa tenha o espectador nas mãos em poucos minutos de história. Todavia, evidentemente, isso não é o bastante. O argumento não é trabalhado de forma frágil, trazendo à tona um enredo que desperta vero interesse. Captam-se cinco momentos na vida de um casal absolutamente comum, Gilles (Stéphanie Freiss) e Marion (Valeria Bruni-Tedeschi, um oásis de beleza e competência), do dia do seu divórcio à ocasião em que se conheceram, numa praia.
Toda a trajetória dos amantes é delineada a partir desses cinco fragmentos, bem articulados, que evidenciam para o público o verdadeiro modo de ser e de agir de cada um. Logo, precebe-se que neste jogo de azar que é uma relação a dois nunca há culpados ou inocentes. Ambos os lados têm sua parcela de responsabilidade no sucesso ou no fracasso da união. É um afirmativa trivial e óbvia, mas que, esquecida no decurso de um namoro ou casamento, reclama sua evidência permanente.
O recurso empregado por Ozon, contar uma história de trás para a frente, não é novo. Em "Irreversível", Gaspar Noé já havia lançado mão desse mesmo expediente, apenas dois anos antes. Mas, se no filme protagonizado por Monica Belucci e Vincent Cassel o mote era o impacto de cenas difíceis de se esquecer, em "Amor em cinco tempos" a sua utilidade é um pouco diferente. Com o presente sempre antes do passado, torna-se notório que qualquer julgamento que se faz a respeito de um dos personagens, ou dos dois, pode ser totalmente equivocado. Só se descobre o que levou a cada atitude de Gilles ou de Marion depois que o segmento seguinte - na verdade, o anterior - é apresentado.
O truque, por si só, contudo, não é a única razão de relevância do filme. Mas também suaa honestidade em mostrar um homem e uma mulher como quaisquer outros, depidos de idealizações parvas que mascaram defeitos e imperfeições. A certa altura do filme, o espectador pode criar um torcida por ele, por ela ou pelos dois, devido a uma forte identificação com sua história.
Também conta pontos positivos para o filme sua trilha sonora, com canções italianas, belas de doer. Elas ajudam a demarcar pontos cruciais da jornada de Gilles e Marion, que, entre um começo e um término oficiais, passam, também, pela gangorra das idas e vindas. Na cena em que Gilles tenta possuir Marion à força, fulgura um misto de amor recolhido com orgulho próprio abalado, sem que se saiba ao certo o que é cada sentimento. Certo, mesmo, é que sentimentos pouco arraigados sempre acabam.
Com o final anunciado logo na primeira sequência, não se pode afirmar que acompanhar o desfecho de um casal desfeito seja motivo para se assistir ao filme. Nada disso. Interessa, sim, entender e descobrir como tudo começou, e os sinais de que nada ia tão bem desde muito antes do fim de tudo. Afinal, o amor não acaba abruptamente, mas dá pistas, ainda que inexatas, de que está se esvaindo, seja em gestos, seja em olhares, seja em palavras que atravessam os momentos a dois. E Ozon demonstra essa crença com a habilidade de um poeta das incongruências de um casal.
Toda essa introdução serve para pontuar sua importância no cenário artístico atual, em que pese sua não unanimidade entre os críticos. Mas esse já é um outro detalhe não tão pertinente... Christophe Honoré, um de seus compatriotas e contemporâneos, não goza de melhor prestígio, embora seja igualmente talentoso.
Em "Amor em cinco tempos", filme de título autoexplicativo, o grande achado é lidar com as perdas e ganhos de um casal pelo prisma da não-linearidade. O tema não poderia ser mais universal e de fácil identificação, o que é uma das explicacações para que o longa tenha o espectador nas mãos em poucos minutos de história. Todavia, evidentemente, isso não é o bastante. O argumento não é trabalhado de forma frágil, trazendo à tona um enredo que desperta vero interesse. Captam-se cinco momentos na vida de um casal absolutamente comum, Gilles (Stéphanie Freiss) e Marion (Valeria Bruni-Tedeschi, um oásis de beleza e competência), do dia do seu divórcio à ocasião em que se conheceram, numa praia.
Toda a trajetória dos amantes é delineada a partir desses cinco fragmentos, bem articulados, que evidenciam para o público o verdadeiro modo de ser e de agir de cada um. Logo, precebe-se que neste jogo de azar que é uma relação a dois nunca há culpados ou inocentes. Ambos os lados têm sua parcela de responsabilidade no sucesso ou no fracasso da união. É um afirmativa trivial e óbvia, mas que, esquecida no decurso de um namoro ou casamento, reclama sua evidência permanente.
O recurso empregado por Ozon, contar uma história de trás para a frente, não é novo. Em "Irreversível", Gaspar Noé já havia lançado mão desse mesmo expediente, apenas dois anos antes. Mas, se no filme protagonizado por Monica Belucci e Vincent Cassel o mote era o impacto de cenas difíceis de se esquecer, em "Amor em cinco tempos" a sua utilidade é um pouco diferente. Com o presente sempre antes do passado, torna-se notório que qualquer julgamento que se faz a respeito de um dos personagens, ou dos dois, pode ser totalmente equivocado. Só se descobre o que levou a cada atitude de Gilles ou de Marion depois que o segmento seguinte - na verdade, o anterior - é apresentado.
O truque, por si só, contudo, não é a única razão de relevância do filme. Mas também suaa honestidade em mostrar um homem e uma mulher como quaisquer outros, depidos de idealizações parvas que mascaram defeitos e imperfeições. A certa altura do filme, o espectador pode criar um torcida por ele, por ela ou pelos dois, devido a uma forte identificação com sua história.
Também conta pontos positivos para o filme sua trilha sonora, com canções italianas, belas de doer. Elas ajudam a demarcar pontos cruciais da jornada de Gilles e Marion, que, entre um começo e um término oficiais, passam, também, pela gangorra das idas e vindas. Na cena em que Gilles tenta possuir Marion à força, fulgura um misto de amor recolhido com orgulho próprio abalado, sem que se saiba ao certo o que é cada sentimento. Certo, mesmo, é que sentimentos pouco arraigados sempre acabam.
Com o final anunciado logo na primeira sequência, não se pode afirmar que acompanhar o desfecho de um casal desfeito seja motivo para se assistir ao filme. Nada disso. Interessa, sim, entender e descobrir como tudo começou, e os sinais de que nada ia tão bem desde muito antes do fim de tudo. Afinal, o amor não acaba abruptamente, mas dá pistas, ainda que inexatas, de que está se esvaindo, seja em gestos, seja em olhares, seja em palavras que atravessam os momentos a dois. E Ozon demonstra essa crença com a habilidade de um poeta das incongruências de um casal.
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Cinema
18 de jan. de 2010
"A vida dos outros", um canto de liberdade
Na esteira de filmes que falam sobre os anos desconcertantes do regime político que cindiu a Alemanha por longas décadas no século XX, "A vida dos outros" merece, com louvor, um lugar de destaque entre as obras mais relevantes sobre o assunto, que já foi abordado por diferentes perspectivas e por realizadores das mais variadas estirpes.
No filme em questão, cabe a um diretor estreante dar conta de lançar seu olhar sobre um momento dessa era nebulosa. E ele é Florian Henckel von Donnesmarck, capaz do feito de entregar um filme indispensável passado na Alemanha nazista.
A câmera do cineasta acompanha, pacientemente, os passos de um casal de artistas que vive nesse ambiente em que qualquer desvio de uma norma extremamente coecirtiva é classificado com subversão. Ele é o dramaturgo Georg. Ela é a atriz Christa-Maria. Suas ações vêm levantando a suspeita de que há algo de errado com eles, o que leva um capitão em busca de ascensão na carreira a escalar um agente para acompanhar a rotina dos artistas, passo a passo. Com isso, qualquer passo em falso dado por eles terá, imediatamente, sua punicão devida.
Gerd, o agente, passa a ser somente olhos e ouvidos, em seu cotidiano de atenção constante sobre Georg e Christa-Maria. Sua vida passa a ser a vida levada pelos dois, sem que ele se dê conta disso. É impressionante notar a crueldade de um sistema que leva o desejo de uniformidade e obediência cega até as últimas consequências, trazendo resultados amargos para todos os envolvidos. A impressão de um cenário altamente opressor é sublinhada pela utilização de uma fotografia algo acinzentada, e pela opacidade da luz que atravessa várias cenas.
Além desses elementos, a direção segura de Donnersmarck também conta bastante a favor de "A vida dos outros", e os atores, com suas inspiradas interpretações, reforçam essa tese. O trio de nomes centrais que se vê na tela dá tudo de si, gerando cenas memoráveis. Ulrich Mühe está perfeito na pele do agente que, de tanto acompanhar tudo o que se passa com o casal que está espionando, desenvolve uma clara afeição por eles, que se preocupa em esconder o tempo todo. Mas essa afeição também o leva a passar por cima de códigos e protocolos e tomar uma atitude inesperada, que interfere na vida dos artistas, lá quase pelo final do filme.
No mais, "A vida dos outros" é um filme ao qual se deve assistir com atenção acurada, para que se evite perdas importantes, na narrativa, que sofre reviravoltas em algumas passagens. Esse é um retrato reflexivo de como um regime cruel interferiu negativamente nas vidas de pessoas absolutamente comuns, que apenas viviam.
No filme em questão, cabe a um diretor estreante dar conta de lançar seu olhar sobre um momento dessa era nebulosa. E ele é Florian Henckel von Donnesmarck, capaz do feito de entregar um filme indispensável passado na Alemanha nazista.
A câmera do cineasta acompanha, pacientemente, os passos de um casal de artistas que vive nesse ambiente em que qualquer desvio de uma norma extremamente coecirtiva é classificado com subversão. Ele é o dramaturgo Georg. Ela é a atriz Christa-Maria. Suas ações vêm levantando a suspeita de que há algo de errado com eles, o que leva um capitão em busca de ascensão na carreira a escalar um agente para acompanhar a rotina dos artistas, passo a passo. Com isso, qualquer passo em falso dado por eles terá, imediatamente, sua punicão devida.
Gerd, o agente, passa a ser somente olhos e ouvidos, em seu cotidiano de atenção constante sobre Georg e Christa-Maria. Sua vida passa a ser a vida levada pelos dois, sem que ele se dê conta disso. É impressionante notar a crueldade de um sistema que leva o desejo de uniformidade e obediência cega até as últimas consequências, trazendo resultados amargos para todos os envolvidos. A impressão de um cenário altamente opressor é sublinhada pela utilização de uma fotografia algo acinzentada, e pela opacidade da luz que atravessa várias cenas.
Além desses elementos, a direção segura de Donnersmarck também conta bastante a favor de "A vida dos outros", e os atores, com suas inspiradas interpretações, reforçam essa tese. O trio de nomes centrais que se vê na tela dá tudo de si, gerando cenas memoráveis. Ulrich Mühe está perfeito na pele do agente que, de tanto acompanhar tudo o que se passa com o casal que está espionando, desenvolve uma clara afeição por eles, que se preocupa em esconder o tempo todo. Mas essa afeição também o leva a passar por cima de códigos e protocolos e tomar uma atitude inesperada, que interfere na vida dos artistas, lá quase pelo final do filme.
No mais, "A vida dos outros" é um filme ao qual se deve assistir com atenção acurada, para que se evite perdas importantes, na narrativa, que sofre reviravoltas em algumas passagens. Esse é um retrato reflexivo de como um regime cruel interferiu negativamente nas vidas de pessoas absolutamente comuns, que apenas viviam.
13 de jan. de 2010
"Desconstruindo Harry" ou o avesso do autor
Na longa seara cinematográfica construída por Woody Allen ao longo de quatro décadas de trabalho, "Desconstruindo Harry" é lembrado com frequência muito baixa. Verdade seja dita, não é dos trabalhos mais celebrados desse grande diretor, mas tem lá suas qualidades.
O cerne das questões levantadas por Allen nesse filme de 1997 são as neuroses do ser humano, tema que se apresenta sobre diferentes facetas (ou não) na sua extensa obra. Assumindo para si a persona desajustada e inconformada com o mundo ao redor, ele dá vida a Harry Block, um escritor que compra brigas com todos os amigos e parentes, transformado-os em seus desafetos em três tempos. O motivo é simples: ao retratá-los da maneira como bem entende em seus livros, gera desconfortos e lança na cara de todos a verdade que se deseja encoberta.
De alguma forma, esse é o pretexto para que sejam debatidas na tela todos os elementos que compõem o arsenal de piadas inteligentes de Allen, que não abre mão de um elenco estelar para dar vida às suas criações (ou de Harry Block), num constante jogo dialético. É bastante curioso acompanhar o desfile de personagens criados pelo diretor, que têm, cada qual em um determinado momento, seu peso na história.
Entre outras situações com um quê e hilariantes, está a perplexidade de uma das ex-mulheres de Harry, Joan, vivida por uma Kirstie Alley no auge do seu talento e beleza, com o comportamento promíscuo que o escritor está tentando imprimir no filho que nem chegou à adolescência. A reação histérica de Joan à atitude do ex-marido leva a uma das cenas mais divertidas de todo o longa.
As boas sacadas do roteiro, o que o filme tem de melhor, estão no retrato contundente de seus personagens, que não são planos, podendo, a qualquer momento, surpreender com suas ações. E também há uma mistura de real e ficcional que balança as crenças do espectador sobre o que está acontecendo ou o que aconteceu, de fato, na história. Essa brincadeira atravessa todo o filme. Os diálogos afiados, outra marca registrada na filmografia alleniania, também aparecem por aqui, revestidos de uma ironia finíssima e um humor cortante.
À semelhança de seu filme anterior, "Todos dizem eu te amo", e de vários dos filmes de Robert Altman, em "Desconstruindo Harry" Woody Allen realiza um filme-painel da diversidade humana, e trata da dificuldade que todos nós temos de encarar nossos defeitos, sem camuflá-los sob máscaras ou concessões hipócritas. Tudo, claro, sob um duplo filtro - ou, talvez, um único -, o de Allen e o de Harry, pois é através do olhar deles que enxergamos cada tipo em cena. Nesse detalhe interessante está um outro grande acerto do longa, que, entretanto, nem sempre captura essa característica do ser humano de forma satisfatória. Fica a impressão de que o enredo poderia ter sido mais bem acabado, talvez por haver um certo excesso de personagens na história.
Entretanto, não é nada que comprometa o conjunto geral da obra, que tem um punhado de referências eruditas, bem ao gosto sofisticado do cineasta, que dialoga, inclusive, com a maior obra da literatura italiana, e também, universal, "A divina comédia" de Dante. Isso acontece na cena em que, atordoado pelos passos "errados" que vem dando, Harry desce ao inferno e conhece o que há nessa terra incógnita. Lá está um de seus personagens, vivido por um Robin Williams abusando do escracho.
Vários são os destaques do elenco, como Demi Moore na pele de Helen, uma das criações de Harry. Ela é a personificação da sensualidade nas cenas em que aparece enfeitando os devaneios de Harvey, papel do então garoto Tobey Maguire, outra boa escolha do diretor para o papel. Também não se pode deixar de citar Billy Crystal, inspiradíssimo dando vida à figura enigmática de Larry, que tem peso ainda mais relevante na narrativa.
Para não-habituados ao universo de Allen, "Desconstruindo Harry" é uma bela oportunidade de penetrar nesse mundo particular daquele que é um dos nomes mais geniais do cinema mundial, que inscreveu seu nome no panteão dos grandes diretores através de sua criatividade e humor incomum para lidar com a banalidade do cotidiano, transformando o trivial em extraordinário.
O cerne das questões levantadas por Allen nesse filme de 1997 são as neuroses do ser humano, tema que se apresenta sobre diferentes facetas (ou não) na sua extensa obra. Assumindo para si a persona desajustada e inconformada com o mundo ao redor, ele dá vida a Harry Block, um escritor que compra brigas com todos os amigos e parentes, transformado-os em seus desafetos em três tempos. O motivo é simples: ao retratá-los da maneira como bem entende em seus livros, gera desconfortos e lança na cara de todos a verdade que se deseja encoberta.
De alguma forma, esse é o pretexto para que sejam debatidas na tela todos os elementos que compõem o arsenal de piadas inteligentes de Allen, que não abre mão de um elenco estelar para dar vida às suas criações (ou de Harry Block), num constante jogo dialético. É bastante curioso acompanhar o desfile de personagens criados pelo diretor, que têm, cada qual em um determinado momento, seu peso na história.
Entre outras situações com um quê e hilariantes, está a perplexidade de uma das ex-mulheres de Harry, Joan, vivida por uma Kirstie Alley no auge do seu talento e beleza, com o comportamento promíscuo que o escritor está tentando imprimir no filho que nem chegou à adolescência. A reação histérica de Joan à atitude do ex-marido leva a uma das cenas mais divertidas de todo o longa.
As boas sacadas do roteiro, o que o filme tem de melhor, estão no retrato contundente de seus personagens, que não são planos, podendo, a qualquer momento, surpreender com suas ações. E também há uma mistura de real e ficcional que balança as crenças do espectador sobre o que está acontecendo ou o que aconteceu, de fato, na história. Essa brincadeira atravessa todo o filme. Os diálogos afiados, outra marca registrada na filmografia alleniania, também aparecem por aqui, revestidos de uma ironia finíssima e um humor cortante.
À semelhança de seu filme anterior, "Todos dizem eu te amo", e de vários dos filmes de Robert Altman, em "Desconstruindo Harry" Woody Allen realiza um filme-painel da diversidade humana, e trata da dificuldade que todos nós temos de encarar nossos defeitos, sem camuflá-los sob máscaras ou concessões hipócritas. Tudo, claro, sob um duplo filtro - ou, talvez, um único -, o de Allen e o de Harry, pois é através do olhar deles que enxergamos cada tipo em cena. Nesse detalhe interessante está um outro grande acerto do longa, que, entretanto, nem sempre captura essa característica do ser humano de forma satisfatória. Fica a impressão de que o enredo poderia ter sido mais bem acabado, talvez por haver um certo excesso de personagens na história.
Entretanto, não é nada que comprometa o conjunto geral da obra, que tem um punhado de referências eruditas, bem ao gosto sofisticado do cineasta, que dialoga, inclusive, com a maior obra da literatura italiana, e também, universal, "A divina comédia" de Dante. Isso acontece na cena em que, atordoado pelos passos "errados" que vem dando, Harry desce ao inferno e conhece o que há nessa terra incógnita. Lá está um de seus personagens, vivido por um Robin Williams abusando do escracho.
Vários são os destaques do elenco, como Demi Moore na pele de Helen, uma das criações de Harry. Ela é a personificação da sensualidade nas cenas em que aparece enfeitando os devaneios de Harvey, papel do então garoto Tobey Maguire, outra boa escolha do diretor para o papel. Também não se pode deixar de citar Billy Crystal, inspiradíssimo dando vida à figura enigmática de Larry, que tem peso ainda mais relevante na narrativa.
Para não-habituados ao universo de Allen, "Desconstruindo Harry" é uma bela oportunidade de penetrar nesse mundo particular daquele que é um dos nomes mais geniais do cinema mundial, que inscreveu seu nome no panteão dos grandes diretores através de sua criatividade e humor incomum para lidar com a banalidade do cotidiano, transformando o trivial em extraordinário.
6 de jan. de 2010
Dores do crescimento em "Estamos bem mesmo sem você"
O cinema italiano recente oferece aos seus espectadores uma pequena pérola chamada "Estamos bem mesmo sem você". Com sensibilidade e destreza, essa é a estreia de Kim Rossi Stuart na direção, depois de alguns trabalhos como ator. Trata-se de mais uma feliz incursão atrás das câmeras, da qual também são representantes Goerge Clooney e Sean Penn.
No centro da trama do filme de Stuart estão o próprio ator, que dá vida ao protagonista Renato, e dois jovens atores, que fazem seus filhos. Os três vivem juntos num modesto apartamento em um subúrbio italiano, desde que a esposa de Renato o abandonou com o casal de filhos à própria sorte. Mesmo a duras penas, parece que eles conseguiram sobreviver à partida dela.
A fim de impor respeito sobre os filhos, entretanto, Renato foi se transformando em um homem austero e dominador, que exige que o filho pratique natação, esporte do qual o garoto não gosta nem um pouco, e que pratica apenas para agradar ao pai. Na verdade, seu sonho é ser um bom jogador de futebol, ambição que é obrigado a tolher.
Toda a frágil harmonia entre o trio é quebrada quando Stefania, a mãe desnaturada, retorna em busca de reconciliação com os filhos e o marido. É a partir daí que as antigas feridas familiares emergem com veemência, despertando diferentes reações em cada um deles. O menino parece mais aberto à volta da mãe, embora seja a garota quem demonstre mais sua vontade de que o pai a perdoe. Está formado o clímax de uma história cuja sinopse, contade de forma rasteira, pode dar a impressão ilusória de que é mais um filme comum e descartável sobre a fragilidade das relações familiares. Mas, como já se disse, essa impressão é ilusória, já que Stuart conduz o filme com notável brilhantismo, seguindo veredas da sinceridade e arrancando atuações emocionantes dos jovens atores que interpretam seus filhos. Numa cena específica, em que Renato insiste com Tommaso para que ele vá para mais uma aula de natação, e o menino reluta, Renato demonstra sua intransigência com o filho, o que acaba fazendo-o chorar. Ainda inflexível, o pai consegue convencer o garoto a entrar para a aula.
Renato precisa, ainda, lidar com o despertar da sexualidade da filha, que começa a se corresponder pela internet com um namorado virtual, e em dados momentos do filme parece manter uma relação algo incestuosa com o irmão,através de algumas brincadeiras, que acaba ficando apenas na superfície. O cenário encontrado por Stefania não é dos mais estáveis, pois, além disso tudo, existe a amargura de Renato, que não suporta a ideia de ter novamente sob o mesmo teto que ele a mulher que lhe causou tanto mal. Pelos filhos, todavia, ele pode ser capaz de fazer concessões, mas tem certeza de que ela os deixará novamente sem aviso prévio.
Com todos esses elementos presentes no enredo, o diretor poderia fazer com que o filme se transformasse num dramalhão pesado, mas não é o que acontece. A tênue linha que separa um drama honesto de uma trama chorosa jamais é ultrapassada, e o enredo também se calca em um realismo que torna tudo bastante verossímil e geradora de identificação. Contar como se processa o desfecho desse pequeno conto moral sobre as rachaduras causadas pelo abandono é entregar de bandeja um filme que deve ser saboreado em suas minúcias, tal qual como foi concebido. Nem sempre é preciso que o extraordinário aconteça para que a vida gire, é o que Stuart demonstra o tempo todo.
Um detalhe é que o roteiro foi escrito a oito mãos, mas, mesmo assim, não se flagram sinais de desarmonia entre os responsáveis por dar vida a um filme tão rico e sentimental, no sentido mais positivo da palavra. É uma pena que tenha passado despercebido para a maioria do público, que deve buscar assistir a esta joia sobre as dores e as dificuldades de se crescer. Nas entrelinhas de "Estamos bem mesmo sem você", está a reafirmação de uma máxima: Viver e crescer doem muito, mas ainda valem a pena.
No centro da trama do filme de Stuart estão o próprio ator, que dá vida ao protagonista Renato, e dois jovens atores, que fazem seus filhos. Os três vivem juntos num modesto apartamento em um subúrbio italiano, desde que a esposa de Renato o abandonou com o casal de filhos à própria sorte. Mesmo a duras penas, parece que eles conseguiram sobreviver à partida dela.
A fim de impor respeito sobre os filhos, entretanto, Renato foi se transformando em um homem austero e dominador, que exige que o filho pratique natação, esporte do qual o garoto não gosta nem um pouco, e que pratica apenas para agradar ao pai. Na verdade, seu sonho é ser um bom jogador de futebol, ambição que é obrigado a tolher.
Toda a frágil harmonia entre o trio é quebrada quando Stefania, a mãe desnaturada, retorna em busca de reconciliação com os filhos e o marido. É a partir daí que as antigas feridas familiares emergem com veemência, despertando diferentes reações em cada um deles. O menino parece mais aberto à volta da mãe, embora seja a garota quem demonstre mais sua vontade de que o pai a perdoe. Está formado o clímax de uma história cuja sinopse, contade de forma rasteira, pode dar a impressão ilusória de que é mais um filme comum e descartável sobre a fragilidade das relações familiares. Mas, como já se disse, essa impressão é ilusória, já que Stuart conduz o filme com notável brilhantismo, seguindo veredas da sinceridade e arrancando atuações emocionantes dos jovens atores que interpretam seus filhos. Numa cena específica, em que Renato insiste com Tommaso para que ele vá para mais uma aula de natação, e o menino reluta, Renato demonstra sua intransigência com o filho, o que acaba fazendo-o chorar. Ainda inflexível, o pai consegue convencer o garoto a entrar para a aula.
Renato precisa, ainda, lidar com o despertar da sexualidade da filha, que começa a se corresponder pela internet com um namorado virtual, e em dados momentos do filme parece manter uma relação algo incestuosa com o irmão,através de algumas brincadeiras, que acaba ficando apenas na superfície. O cenário encontrado por Stefania não é dos mais estáveis, pois, além disso tudo, existe a amargura de Renato, que não suporta a ideia de ter novamente sob o mesmo teto que ele a mulher que lhe causou tanto mal. Pelos filhos, todavia, ele pode ser capaz de fazer concessões, mas tem certeza de que ela os deixará novamente sem aviso prévio.
Com todos esses elementos presentes no enredo, o diretor poderia fazer com que o filme se transformasse num dramalhão pesado, mas não é o que acontece. A tênue linha que separa um drama honesto de uma trama chorosa jamais é ultrapassada, e o enredo também se calca em um realismo que torna tudo bastante verossímil e geradora de identificação. Contar como se processa o desfecho desse pequeno conto moral sobre as rachaduras causadas pelo abandono é entregar de bandeja um filme que deve ser saboreado em suas minúcias, tal qual como foi concebido. Nem sempre é preciso que o extraordinário aconteça para que a vida gire, é o que Stuart demonstra o tempo todo.
Um detalhe é que o roteiro foi escrito a oito mãos, mas, mesmo assim, não se flagram sinais de desarmonia entre os responsáveis por dar vida a um filme tão rico e sentimental, no sentido mais positivo da palavra. É uma pena que tenha passado despercebido para a maioria do público, que deve buscar assistir a esta joia sobre as dores e as dificuldades de se crescer. Nas entrelinhas de "Estamos bem mesmo sem você", está a reafirmação de uma máxima: Viver e crescer doem muito, mas ainda valem a pena.
2 de jan. de 2010
"Juno", um sopro de frescor para o cinema
O sabor de se assistir a um filme bem realizado é um dos mais imprescindíveis. A cada ano que passa, com a necessidade crescente de renovação e a descartabilidade que acometem os seres humanos, encontrar uma história que cative e entretenha sem abrir mão da inteligência se torna mais difícil.
Por isso, "Juno" deve ser saudado como um exemplar contemporâneo dos filmes elegantemente bem dirigidos e com atores em ponto de bala para oferecer ao espectador o melhor em termos de cenas inesquecíveis e enredo que prende a atenção.
O segundo filme de Jason Reitman (do não menos inteligente "Obrigado por fumar") flagra o cotidiano de Juno MacGuff (Ellen Page), uma esperta adolesecente que sabe muito bem o que não quer da vida, mas o que quer... Numa tarde de tédio, decide fazer sexo com o namoradinho de ocasião, e desse ato inconsequente, surge - surpresa! - uma gravidez indesejada. A partir de então, a jovem terá de lidar com a realidade desagradável, para ela, de carregar um filho na barriga pelos próximos nove meses.
De seu inconformismo com a nova situação surge a ideia um tanto inesperada para pôr fim ao seu "problema": entregar a criança que ainda nem nasceu para adoção. Com a ajuda da melhor amiga, decide dar cabo de seu plano mirabolante. Procura nos jornais um casal interessado em adotar um filho, e encontra depois de muito buscar aquele que parece ser o par perfeito para que ela dê o bebê. Entram em cena, para ficar com a criança, os simpáticos Vanessa e Mark, dois trintões tranquilos que não veem a hora de ser pais do filho que Juno espera.
Porém, nada é tão fácil como pode parecer, e são as complicações - ingredientes indispensáveis em um filme que se preze - que reservam os momentos de ápice do longa. Mark, que a princípio parece encantado com a ideia de ser pai, aos poucos vai demonstrando que, talvez, ainda não esteja totalmente pronto para a nova condição. Fica a impressão de que o mais interessante para ele seja continuar por mais um tempo em meio aos instrumentos musicais dedilhando canções algo melancólicas. Seu comportamento evidencia pouca maturidade, como o verdadeira pai da criança, o desengonçado Paulie Bleeker (Michael Cera, um jovem talento). Ambos são polos correspondentes na trajetória tortuosa percorrida por Juno. O desejo de acertar no que fazem também é um ponto de intersecção entre os dois personagens. Esse despreparo logo incomoda Vanessa e aproxima Mark de Juno, gerando uma química bastante amigável entre os dois, antes de qualquer coisa.
Vale destacar que uma das características que a personagem-título tem de melhor é seu sarcasmo, traduzido em tiradas de humor fino e arguto. Responsabilidade de Diablo Cody, ex-stripper que ganhou o Oscar de roteiro original pelo filme e causou frenesi por isso. Sem deixar que a ação resvale para o sentimentalismo ou para a baboseira, ela encontrou o equilíbrio perfeito entre uma narrativa bem construída e um entretenimento para jovens. Nem sempre essa alquimia é obtida, ponto para Diablo.
As cenas são, em sua maioria, de uma leveza e graça encantadoras, e os coadjuvantes também dão conta do recado, como é o caso de J.K. Simmons e Allison Janney, respectivamente o pai e a madrasta de Juno. Apesar das aparições relativamente curtas em cena, ambos agradam, e muito pela maneira como inserem suas opinões valiosas sobre o desdobrar dos acontecimentos. Golpe de mestre de Reitman, que já mostrou a que veio com um filmografia ainda curta, mas relevante. No meio da enxurrada de novos diretores que toma de assalto a Hollywood ano após ano, nem sempre é tarefa fácil distinguir quem vale mesmo a pena de quem só tem a apresentar uma coleção de incipiências.
A cena final, com os protagonistas tocando violão, é de uma simplicidade notável, e de um realismo igualmente visível. Coroa o esforço e a dedicação de todos os envolvidos de trazer ao público uma trama à qual se deve realmente assistir, provando que ainda se faz bom cinema na contemporaneidade. Decreta-se, assim, que juvenil, definitivamente, não rima com imbecil.
Por isso, "Juno" deve ser saudado como um exemplar contemporâneo dos filmes elegantemente bem dirigidos e com atores em ponto de bala para oferecer ao espectador o melhor em termos de cenas inesquecíveis e enredo que prende a atenção.
O segundo filme de Jason Reitman (do não menos inteligente "Obrigado por fumar") flagra o cotidiano de Juno MacGuff (Ellen Page), uma esperta adolesecente que sabe muito bem o que não quer da vida, mas o que quer... Numa tarde de tédio, decide fazer sexo com o namoradinho de ocasião, e desse ato inconsequente, surge - surpresa! - uma gravidez indesejada. A partir de então, a jovem terá de lidar com a realidade desagradável, para ela, de carregar um filho na barriga pelos próximos nove meses.
De seu inconformismo com a nova situação surge a ideia um tanto inesperada para pôr fim ao seu "problema": entregar a criança que ainda nem nasceu para adoção. Com a ajuda da melhor amiga, decide dar cabo de seu plano mirabolante. Procura nos jornais um casal interessado em adotar um filho, e encontra depois de muito buscar aquele que parece ser o par perfeito para que ela dê o bebê. Entram em cena, para ficar com a criança, os simpáticos Vanessa e Mark, dois trintões tranquilos que não veem a hora de ser pais do filho que Juno espera.
Porém, nada é tão fácil como pode parecer, e são as complicações - ingredientes indispensáveis em um filme que se preze - que reservam os momentos de ápice do longa. Mark, que a princípio parece encantado com a ideia de ser pai, aos poucos vai demonstrando que, talvez, ainda não esteja totalmente pronto para a nova condição. Fica a impressão de que o mais interessante para ele seja continuar por mais um tempo em meio aos instrumentos musicais dedilhando canções algo melancólicas. Seu comportamento evidencia pouca maturidade, como o verdadeira pai da criança, o desengonçado Paulie Bleeker (Michael Cera, um jovem talento). Ambos são polos correspondentes na trajetória tortuosa percorrida por Juno. O desejo de acertar no que fazem também é um ponto de intersecção entre os dois personagens. Esse despreparo logo incomoda Vanessa e aproxima Mark de Juno, gerando uma química bastante amigável entre os dois, antes de qualquer coisa.
Vale destacar que uma das características que a personagem-título tem de melhor é seu sarcasmo, traduzido em tiradas de humor fino e arguto. Responsabilidade de Diablo Cody, ex-stripper que ganhou o Oscar de roteiro original pelo filme e causou frenesi por isso. Sem deixar que a ação resvale para o sentimentalismo ou para a baboseira, ela encontrou o equilíbrio perfeito entre uma narrativa bem construída e um entretenimento para jovens. Nem sempre essa alquimia é obtida, ponto para Diablo.
As cenas são, em sua maioria, de uma leveza e graça encantadoras, e os coadjuvantes também dão conta do recado, como é o caso de J.K. Simmons e Allison Janney, respectivamente o pai e a madrasta de Juno. Apesar das aparições relativamente curtas em cena, ambos agradam, e muito pela maneira como inserem suas opinões valiosas sobre o desdobrar dos acontecimentos. Golpe de mestre de Reitman, que já mostrou a que veio com um filmografia ainda curta, mas relevante. No meio da enxurrada de novos diretores que toma de assalto a Hollywood ano após ano, nem sempre é tarefa fácil distinguir quem vale mesmo a pena de quem só tem a apresentar uma coleção de incipiências.
A cena final, com os protagonistas tocando violão, é de uma simplicidade notável, e de um realismo igualmente visível. Coroa o esforço e a dedicação de todos os envolvidos de trazer ao público uma trama à qual se deve realmente assistir, provando que ainda se faz bom cinema na contemporaneidade. Decreta-se, assim, que juvenil, definitivamente, não rima com imbecil.
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