29 de fev. de 2012

O notável oásis metalinguístico de Romance


A seara nacional cada vez mais ampla oferece surpresas realmente agradáveis, e com uma frequência cada vez mais alta. Este é o caso de Romance (idem, 2008), cujo diretor, Guel Arraes, é normalmente associado a projetos com uma roupagem e uma condução televisiva demais para o paladar cinéfilo. No filme em questão, entretanto, ele consegue se desvencilhar a maior parte do tempo da consonância excessiva entre as linguagens dos dois suportes. Tendo como protagonistas Ana (Letícia Sabatella) e Pedro (Wagner Moura), a película apresenta a história de uma dupla de atores que se torna um casal depois que ela é escolhida por ele em um teste de elenco para uma nova adaptação do clássico Tristão e Isolda. Ao olhar dele, aquela atriz é escolha mais do que acertada para o papel da heroína, e ele mesmo é o intérprete de seu par romântico. Juntos, eles se empenham em levar aos palcos a sua montagem do livro, de cuja fonte Shakespeare bebe diretamente, assim dizem os especialistas.

Partindo dessa premissa metalinguística, o diretor oferece um produto (sim, não vamos esquecer a dimensão pecuniária do cinema) de alta qualidade ancorado em um ótimo elenco, a começar pelos atores principais. Tanto Moura quanto Sabatella reúnem consigo um talento marcante para dar a vida a dois personagens cada, e conseguem prender a atenção do espectador para os desdobramentos decorrentes da parceria entre ambos em cena e na vida particular. Tão logo se tornam namorados, Pedro e Ana vivem o idílio amoroso de forma intensa, com a presença sobejante do casal que interpretam em seu relacionamento. Tudo apresenta uma harmonia que parece inquebrável, bastante pertinente a dois amantes em estado de graça. Contudo, a love story sofre um grande solavanco diante do enorme sucesso que Ana experimenta com seu trabalho, despertando o interesse de Danilo (José Wilker), um produtor de televisão que a convida para um papel em uma novela. A ideia é péssima para Pedro, que não consegue admitir sua namorada em um veículo de massa onde, segundo ele, não existe a menor liberdade criativa.

Somada à resistência de Pedro em que Ana vá para a televisão, está o ciúme em forma de exclusividade artística demonstrado por ele, bem como o despertar da consciência de que um romance como o de Tristão e Isolda apresenta aquilo que é mais caro à representação de qualquer artista: o amor só vale a pena ser visto pelo público ou pelo leitor se houver algum tipo de obstáculo à sua concretização. Casais felizes não dão audiência, e eles parecem carregar essa máxima inconscientemente para as suas próprias vidas. Arraes, em parceria com Jorge Furtado, engendrou um roteiro bem azeitado, que expõe os bastidores de ensaios de um espetáculo teatral e o quanto o contato com personagens pode influenciar o comportamento e a vida dos atores que dão vida a ele. Romance é pontuado por tiradas e reflexivas e bem-humoradas, em sua maioria distante do teor de “pérolas de sabedoria”. Muitas das conclusões a que Ana e Pedro chegam têm utilidade prática, e versam sobre a agonia de querer e ao mesmo tempo de ser capaz de ver o bem do parceiro incondicionalmente, especialmente quando a vontade do outro é distante ou diferente da sua. O ciúme e o impasse entre cinema e televisão desgastam o namoro de Ana e Pedro, e os afasta por alguns anos. Enquanto ele permanece com a sua sensação de liberdade criativa no teatro, ela atinge a fama nacional como atriz de novela.



Naturalmente, com esse embate travado pelo casal, que culmina com a sua separação, o filme coloca em discussão a validade do trabalho de um ator televisivo diante de outro que atue no teatro. Espertamente, o roteiro não se reduz a mostrar a TV como algo puramente negativo, nem o teatro como a melhor coisa do mundo. Existe espaço para ambos na concepção do diretor, e isso vai sendo demonstrado com os altos e baixos enfrentados por Pedro e Ana em suas respetivas áreas de atuação. O elenco ainda é reforçado por um belo time de coadjuvantes, em especial Andréa Beltrão, que costuma dar provas de sua versatilidade por onde quer que passe. Na pele de Fernanda, ela é a síntese do pensamento de quem faz e assiste à televisão: sempre atenta ao que o grande público deseja, censura as ideias de Pedro em sua cisma de conceber o teatro como inatingível e obrigatoriamente complexo, para abandoná-lo posteriormente com sua resistência e cultivar a carreira de Ana. Sua personagem reúne carisma e charme na medida certa, e traz um frescor muito benvindo à trama, sendo uma produtora adorável e odiável quase ao mesmo tempo. Tem-se, ainda, a presença talentosa de Vladimir Brichta, cada vez mais raro na televisão, que interpreta um ator para quem um personagem precisa estar vivo o tempo inteiro, como parte de uma trapaça idealizada por Fernanda para que ele consiga um papel importante.

O resultado final de Romance é muito próximo do excelente, sendo seu elenco e seu roteiro as suas grandes qualidades. Em várias sequências, o texto destila uma fina ironia, tornando-se comparável ao de outros filmes cujos diretores fizeram graça com seu próprio ofício, de que Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950) talvez seja o exemplo mais icônico. No caso de Arraes, ele apresenta uma curiosa capacidade de rir de si mesmo, já que demonstrou, muitas vezes, agir de acordo com os certames dos grandes produtores, que privilegiam a simplicidade excessiva para que encham seus bolsos com altas cifras. Felizmente, Romance se afasta de uma estética puramente televisiva, e a convoca em ocasiões em que ela é, de fato, relevante, contribuindo para o teor crítico apresentado pelo filme. Em pouco mais de uma hora e meia, o público se vê diante de diálogos inspirados, achados valiosos e soluções narrativas bem pensadas. O longa consegue dar conta de desenvolver as questões que se propõe a abordar, e serve como uma ótima alternativa de mescla de entretenimento com reflexão, baseando-se em uma metalinguagem das boas.

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