21 de fev. de 2012
A linda e emotiva jornada de Paisagem na neblina
A economia nos diálogos pode ser uma forte aliada de uma boa história, como evidencia Paisagem na neblina (Topio stin omichli, 1988), lindo trabalho de ourivesaria de Theodorus (chamado Theo) Angelopoulos, cineasta grego que permanece pouco badalado ou apreciado pelos membros da comunidade cinéfila. O seu semiostracismo é quase um desaforo, visto que o filme em questão é um nobre exemplar de sua capacidade de comover e encantar a plateia, pautando pela riqueza das imagens que dispensam, muitas vezes, palavrórios e teorizações. Aqui temos a história de um casal de irmãos que sonha em chegar à Alemanha, mas não tem dinheiro suficiente para custear a viagem. Eles moram na Grécia e desejam chegar ao outro país para reencontrar o pai, que os abandonou à própria sorte anos atrás sem maiores explicações. O fato, ao invés de magoá-los ou revoltá-los, produziu neles um misto de resignação com inquietude, já que eles tentam de todas as maneiras embarcar no trem que leva à nação alemã. À noite, eles ficam na estação esperando uma oportunidade de pegar o tal trem, mas precisam fazê-lo sem que o fiscal do lugar perceba.
Depois de tantas tentativas, eles enfim conseguem realizar o desejo de pegar o trem, mas isso não significa que eles chegarão até ao final da viagem. Os dois, aliás atendem pelos nomes de Voula (Tania Palaiologou) e Alexandre (Michalis Zeke), e são uma dupla muito simpática e afável. A viagem de ambos é interrompida quando eles são descobertos por um outro fiscal e despachados logo na parada seguinte. Assim, têm o rumo totalmente desviado do que planejavam inicialmente, embora no percam a fé no reencontro com o genitor. Angelopoulos acertou ao concentrar o foco de Paisagem na neblina nas aventuras e desventuras das crianças, que cativam ao primeiro olhar. Elas são postas em contato desde cedo com alguns dos males do mundo, e demonstram um amadurecimento atordoante no confronto com os reveses. Especialmente Voula, que é atravessada pela maldade de um homem insaciável à beira da estrada, na sequência mais objetivamente dolorida de todo o filme.
A expectativa em torno do encontro de Voula e Alexandre com o pai cessa quando ele de fato ocorre, e se transforma na mesma decepção quase silenciosa das crianças. Mal se pode acreditar que ele seja capaz de deixar aqueles dois irmãos à mercê da sorte, mas é exatamente o que ele faz, alegando não ter condições financeiras para criá-los, um argumento fraco que só faz crescer o desprezo por aquele homem. É a partir desse descaso do pai que os irmãos embarcam em uma poderosa jornada emocional, que pode levar corações mais insensíveis ao degelo completo. No caminho acidentado que eles passam a trilhar, encontram mil acontecimentos, e é como se crescessem dez anos em alguns dias. Entre outras coisas, eles descobrem o inestimável valor da amizade na figura de Orestis (Stratos Tzortzoglou), um rapaz que faz parte de uma trupe de artistas itinerantes que acolhe os dois com uma gentileza ímpar, e acaba sendo o único com quem eles podem contar na dura caminhada. Nota-se a sinceridade de seus sentimentos de afeição e carinho pelos irmãos, e a profunda compreensão que ele demonstra diante dos dilemas e do desenvolvimento de Voula, de quem se aproxima também com a alma. Verdadeiramente, Orestis é um jovem capaz de atos de nobreza.
Este é um daqueles filmes que embevecem retinas com apetite voraz para belas imagens atreladas a histórias maravilhosas. Angelopoulos casa ambos quesitos para falar de desencantamento e desabrochamento, entre outros temas já mencionados anteriormente. Apontado como responsável por fazer do diretor, ainda que apenas por um breve período, uma unanimidade entre os críticos, Paisagem na neblina exala poesia e docilidade como poucas vezes o cinema viu em sua história recente. Os acontecimentos se dão de forma natural, tanto que muitos desses momentos sequer parecem ter sido escritos anteriormente. É como se o realizador tivesse deixado alguns desdobramentos da narrativa por conta do acaso, e essa aparente ausência d premeditação resultam em instantes de profundo encantamento. Voula e Alexandre têm um vasto mundo pela frente, e os longos e abertíssimos planos do filme se encarregam de dar conta dessa vastidão, deixando entrever o paradoxo da pequeneza e da grandeza dos dois irmãos diante da vida que não para de lhes acenar novas possibilidades, para o bem e para o mal.
Ao mesmo tempo que amplia a visão do caminho tortuoso de Voula e Alexandre com os tais planos, Angelopoulos praticamente abre mão de uma trilha sonora, e deixa tudo mais pungente e emocionante, sem soar, em momento algum, manipulador. Pelo contrário. O grego é um artista da sensibilidade, e compõe ângulos de beleza magistral, tornando as mais de duas horas de filme dotadas de uma incrível fluidez, comparável a um rio caudaloso cujas águas correm sem que se perceba exatamente qual seja sua origem ou seu destino. Em Paisagem na neblina, a viagem, por si só, vale muito mais do que a chegada em si. A certa altura do filme, não importa mais saber se os irmãos conseguirão chegar à Alemanha, mas o quanto aquele lento e longo percurso será capaz de modificar as suas vidas. E, na conclusão dessa odisseia enternecedora, o espectador também pode sair modificado. O título, por sua vez, carrega uma bela metáfora que ganha sentido e intensidade ao longo do filme, a ponto de se transfigurar em uma verdade: é preciso cuidar para que a neblina não ofusque nossa visão, e então contemplaremos belezas inenarráveis.
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