16 de fev. de 2012

Sob a areia e o que vai em um coração entre a esperança e a luta


Em Sob a areia (Sous le sable, 2000), François Ozon parte de um princípio bastante simples: cada um acredita no que quiser. A utilização dessa espécie de máxima ocorre através de Marie (Charlotte Rampling), uma mulher madura e charmosa que vive um casamento ordeiro e apaixonado ao longo de muitos anos. Entre eles, é nítido o sentimento de carinho e encanto, embora desde as primeiras cenas o amor dela soe muito mais intenso que o dele. Não há conflitos de qualquer natureza entre o casal até aonde o horizonte de observação imposto pelo diretor deixa que se vá. Entretanto, a arte não sobrevive sem conflitos. O cinema, a literatura e qualquer outra de suas vertentes exige que se rompa um estado de coisas inicial para que, posteriormente, encontre-se um rearranjo. E aqui não é diferente. Marie e Jean, o marido, partem para um balneário francês a fim de passar um fim de semana idílico. Mais uma vez, supõe-se que outro sentimento com mais intensidade nela do que nele: o entusiasmo. Aquela viagem não parece tão interessante para ele quanto para ela. E o fator desestabilizador do casal está exatamente nessa viagem.

O desequilíbrio se instaura quando, sem qualquer aviso prévio, Jean desaparece em uma praia quase deserta à qual eles tinham ido passar o dia. A procura de Marie começa a partir desse momento, e será a diretriz de suas ações até certa altura da história. Ozon nos causa o estranhamento ao fazer do drama da protagonista um misto de desvario com válvula de escape. Tudo porque, depois que Jean desaparece, as pistas apontam para a sua morte, mas Marie prefere acreditar que ele possa voltar quando menos esperar. Mais do que isso, ela continua agindo como se Jean ainda estivesse ao seu lado, falando dele no presente. Esta é a grande cisão da narrativa de Sob a areia: teria Marie enlouquecido diante da perda (?) de seu esposo ou seria a sua atitude uma tentativa deliberada de mascarar o sentimento de agonia diante de um fato contra o qual ela não tem poder algum? A dúvida paira o tempo todo sobre o espectador do filme, que se vê como testemunha de uma mulher enigmática. Por conta de seu comportamento, ela torna tudo perturbador, e intriga inclusive o seu amante, diante do qual age como se ainda fosse uma mulher casada.

Entretanto, há uma versão que parece mais plausível para o estranho agir de Marie, que é exatamente a segunda a ter sido levantada aqui. Ela não quer admitir que possa ter perdido Jean para sempre e cria uma fantasia na qual acredita piamente. É como alguém que, de tanto repetir uma mentira, acaba convencendo a si mesmo de que ela seja verdadeira. Ou alguém que acredita tanto na ilusão que criou que passa e concebê-la como uma realidade. De qualquer modo, Ozon não se inclina totalmente para a defesa dessa versão. Disso resulta a natureza fluida de Sob a areia. Em outras palavras, o filme instiga, mas por muitas vezes se assemelha a um canto monocórdio cujas sutilíssimas variações não são capazes de produzir algum impacto ou um suspiro. E, em termos de classificação cinematográfica, o filme oscila entre o drama e o thriller psicológico, sem que o realizador francês demonstre uma preferência por um ou outro. Naturalmente, em cinema os gêneros não são (nem deveriam ser) estanques, mas o hibridismo entre um ou mais gêneros requer uma certa diligência, ou a sensação básica que passa a acompanhar o público é a de que se está diante de um roteiro truncado.



Sob a areia é o quarto filme de Ozon, que surgiu no ambiente cinemagráfico com o pouco visto Sitcom – Nossa linda família (Sitcom, 1998), definido como uma ácida crítica social com roupagem de comédia de costumes. Sua fama, há algum tempo, é a de um diretor que gosta de partir de temáticas ou gêneros consagrados e inverter as suas características basilares, apresentando uma leitura toda sua de cada um. Não faltam exemplos que comprovam essa observação, sobretudo nos filmes que sucederam Sob a areia, como a reinvenção do musical em Oito mulheres (Huit femmes, 2002) e a desconstrução do romance em Amor em cinco tempos (5 x 2, 2004). Normalmente, ele é muito bem-sucedido em seus projetos, embora até hoje não seja uma unanimidade entre os críticos. Sob a areia, entretanto, pode ser analisado como um pequeno tropeço de sua carreira, sobretudo pelo fato de que sua proposta não parece ter sido concretizada. Em entrevista à imprensa durante o período de divulgação do filme, ele afirmou que a história versava sobre o amor, e sobre como a grande maioria das pessoas só consegue valorizar algo depois de perdê-lo. Na tela, o sentimento norteador de Marie parece ser outro, embora a chama do desespero seja visível em seus olhos.

Em uma análise mais ampla da obra de Ozon, percebe-se que Sob a areia se filia ao seu interesse em representar temas batidos com um sopro de inovação, embora aqui não se esteja ante a um filme a que se possa chamar de memorável. O que mais impacta é a atuação de Rampling, uma atriz para quem a alcunha de diva é bastante cabível. Não em seu componente de ostentação, mas por aquilo que carrega de constatação do talento do indivíduo ao qual a palavra é endereçada. Sem recorrer a pantomimas ou a um desassossego vozeado, ela transmite todo o obscurantismo que circunda Marie, tornando a personagem tão fascinante quanto excêntrica. Além do mais, ela está presente em praticamente todas as cenas, cabendo à sua interpretação a árdua tarefa de conduzir o desdobrar de todo o enredo. Felizmente, a parceria entre ambos foi positiva para a atriz, que seria novamente dirigida por Ozon três anos depois no cálido Swimming pool – À beira da piscina (Swimming pool, 2003). Para ela, ele dirige como um veterano. Para o espectador, fica a concepção de que Ozon é um diretor com marcas próprias que, se não acerta em cheio o tempo todo, até aqui não tem feito menos que o relevante. E, no caso de Marie, o que se sente antes de mais nada é que ela decidiu crer naquilo que vive.

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