16 de mar. de 2012

Reviravoltas intensas do destino em Balada do amor e do ódio


Quem pode sondar os caminhos da vida? A cada novo passo que se dá, um abismo pode se abrir. Apoiado nessas duas constatações, Alex de la Iglesia entregou mais um exemplar de seu cinema inquieto e espamódico, o espetacular – em mais de um sentido – Balada do amor e do ódio (Balada triste de trompeta, 2010). O diretor e roteirista elegeu como foco narrativo a rivalidade entre dois palhaços que carregam consigo a tragédia em vez da comédia. Carregado no humor negro, ele faz, desfaz e refaz os rumos de seu conto enigmático, ganhando o espectador pelo que seu roteiro tem de mirabolante. Segundo o espanhol, o palhaço é uma figura arquetípica em sua nação, tanto quanto o padre ou o toureiro. A decisão de apresentar um protagonista com essa profissão, portanto, relaciona-se diretamente à sua iconicidade. E Iglesia ainda faz questão de ambientar sua trama na Espanha pós-guerra civil, resultando em uma moldura trágica por si só.

Com relação à trama, sua premissa é bastante simples: os dois palhaços da história se tornam inimigos mortais por causa do interesse em uma mesma mulher, a mais bonita de todo o circo. Javier (Carlos Areces) começa a história como uma criança, abraçando o seu ofício como herança natural de seu pai, que também o exercia. Ao crescer, torna-se o tipo perfeito para ser alvo de toda sorte bullying em que se possa pensar: é tímido, taciturno e gordo. Com poucos amigos, ele vai parar num circo madrilenho que pertence Sergio (Antonio de la Torre), que reina absoluto naquele lugar. Ambos atendem por suas alcunhas: Triste e Gracioso, respectivamente. E são extremos opostos, o que fica claro desde o primeiro encontro entre os dois. Contudo, Iglesia foge do esquematismo e mostra, desde o começo, defeitos e qualidades em ambos, ressaltando que nem um nem outro é inocente ou vilão. O pomo da discórdia entre os dois é a belíssima Natalia (Carolina Bang).

O relacionamento de Sergio e Natalia tem nítidos contornos de patologia, o que parece despertar o interesse de Javier. Em alguns momentos, ele age como voyeur das fantasias eróticas do casal, que envolve violência e uma pitada de degradação. Quanto mais caem na perversão, mais a querem. Não tarda para que se instaure um triângulo amoroso entre eles, cujo desenvolvimento é a ocasião perfeita para o diretor demonstrar novamente o quanto é habilidoso contador de histórias e de como pode levar as trajetórias de seus personagens para rumos realmente inesperados. Um de seus filmes anteriores, Crime ferpeito (Crimen ferpecto, 2004), também é exemplar nessa capacidade de surpreender, assim como também exala seu humor politicamente incorreto, encurralado em tempos de polidez fajuta e artificialismo nas relações humanas. O maior trunfo no cinema do diretor é justamente o roteiro, sempre aberto a bizarrices e insanidades. O amor de Javier (ou seria uma obsessão?) por Natalia desencadeia nele uma série de reações alarmantes, que o arrastam para a sarjeta em dois tempos.



Contar com mais detalhes o que se sucede em Balada do amor e do ódio é estragar parte da surpresa de um filme altamente envolvente, que segura o espectador na cadeira desde os primeiros minutos e, em muitos outros, deixa a sua respiração ofegante. Iglesia concentra suas estripulias não em efeitos visuais, mas na colocação de seus personagens em situações improváveis, sempre em flerte com o estapafúrdio e o grotesco, somadas a lampejos de sublime, uma mistura realmente interessante, de que poucos cineastas parecem capazes. Em pouco menos de 100 minutos, o realizador basco nos faz torcer contra e a favor de um mesmo personagem, alterando nossas perspectivas sobre cada um a cada nova sequência, evidenciando nuances de caráter e de personalidade que são acompanhadas por uma paleta de cores embevecedora, originária da direção de fotografia magnânima de Kiko de la Rica. Embebida nos tons escarlates e azulados, ela é festa para os olhos ávidos de se empapuçar com inventividade visual, numa policromia que se avizinha àquela praticada no cinema almodovariano, tendo, inclusive, intenções e efeitos similares.

Em sua passagem pelo Festival de Veneza, Balada do amor e do ódio papou os prêmios de direção e roteiro, ambos concedidos ao tarimbado Iglesia, cuja gramática fascinante e pitoresca emite exemplares de nobreza em meio à perfídia. Esse é apenas o caso mais recente até o momento, a demonstração de que ele tem uma aura toda sua, uma identidade visual ímpar e imponente, de que pode e deve se orgulhar, visto que sobejam virtudes nos vários quadrantes contidos no filme. Sua direção de atores também é fantástica, o resultado de uma entrega de cada um ao seu papel como se fosse o de sua vida, em especial o trio que está presente em quase todas as cenas. Na pele de Natalia, Bang atrai também o público com sua beleza estonteante e esvoaçante, tornando possível compreender o estado de desorientação que acomete Javier desde a primeira vez em que ele põe os olhos nela. Quantos mais ele, ela e Sergio têm seus rumos entrelaçados, mais inexorável parece a ciranda caótica de suas vidas, como se o destino lhes impusesse impiedosamente aquela teia de acontecimentos. Para além dessa teia, tudo está contextualizado em um dos episódios mais tenebrosos da história da Espanha, que, somado à inventividade de Iglesia, resulta em uma alquimia hipnótica.

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