10 de mai. de 2011

A eterna procura por afeto localizada em Estrela solitária

Os campos abertos dos EUA exercem um fascínio sobre Wim Wenders há muito tempo. Vez por outra, eles figuram em seus retratos pontuais sobre a sensação de desamparo que assinala a natureza humana. E assim o é em Estrela solitária (Don’t come knocking, 2005), um de seus trabalho mais recentes e, talvez, menos vistos. Aqui, o cowboy velho e cansado de guerra é materializado na figura de Howard Spence (Sam Shepard), um ator veterano que se destaca com seus personagens da mesma maneira que é talentoso para arranjar confusão na vida pessoal. Por conta de seu temperamento explosivo, Howard acaba abandonando o set de filmagem de seu novo trabalho, o que obriga o diretor da fita a contratar um “caçador de recompensas”, Sutter (Tim Roth), que tem de informar seu paradeiro o quanto antes, para que a produção continue a ser rodada. É então que começa o clima de road movie que vai demarcar toda a narrativa de Estrela solitária a partir daí.

Wenders elabora uma linda homenagem ao mais estadunidense dos gêneros cinematográficos através da figura de seu protagonista, e reedita a parceria com Shepard como roteirista 21 anos depois de Paris, Texas (idem, 1984). Os dois sempre são lembrados por esse filme, que se firmou como um ícone no imaginário cinéfilo, e aqui investem novamente na temática da viagem emocional, rendendo um filme sincero e apaixonado. É fácil esquecer que o realizador é alemão, pois sua forma de se apropriar da alma dos habitantes dos EUA é tão intensa que sua verdadeira nacionalidade passa despercebida. Sua câmera filtra a cor local das paisagens desérticas como poucos, demonstrando uma profunda intimidade com o objeto de análise, por assim dizer.
O ponto de partida para a mudança na trajetória de vícios e loucuras de Howard é a descoberta da existência de um filho, do qual ele jamais soubera antes, e que o leva a uma jornada de reaproximação de pessoas que compuseram a estrada da sua vida. Essa é a deixa para que Wenders apresente na tela uma série de tipos que apresentam a carência de afeto como pólo aproximante, a começar pela misteriosa Sky (Sarah Polley), cujo nome é altamente sugestivo, por sua representação de uma nova guinada para o ator. Na verdade, ele descobre que tem um filho por meio de sua mãe (Eva Marie Saint), a qual não revela se se trata de um homem ou de uma mulher. Logo o espectador descobre que ele é Earl (Gabriel Mann), um sujeito de personalidade forte e extremamente rufião. Qualquer semelhança com Howard não é mera coincidência. Mas os laços familiares que os unem são a última coisa que vem à tona no relacionamento entre eles, que começa faiscante e beligerante. Através de Estrela solitária, Wenders penetra no terreno arenoso da relação paternal, um filão que constitui um manancial perene para o cinema. Assim como o uso da metalinguagem e as cinebiografias, a exploração dos matizes que afetam a convivência entre pai e filho surgem com frequência nos filmes. Para citar dois exemplos recentes e bem –sucedidos, temos Flores partidas (Broken flowers, 2005) e Um lugar qualquer (Somewhere, 2010), em que a questão da paternidade aflora a partir do contato mais próximo entre genitor e rebento. Entretanto, cada qual apresenta sua visão para o tema, o que os torna únicos e passíveis de serem acompanhados com perspectivas complementares. Um senão de Estrela solitária talvez seja seu título em português, completamente distante do original. “Don’t come knocking” pode ser traduzido livremente como “Não venha batendo”, uma alusão a um comportamento defensivo de quem não sabe qual pode ser a reação do outro à sua proximidade. Exatamente esse comportamento, um claro mecanismo de defesa nos termos de Freud, surge nas atitudes rudes de Howard com Earl e vice-versa. No fundo, ambos estão vazios de afeto, mas não são capazes de demonstrar essa necessidade, acabando por canalizá-la para a agressividade. E a escrita de Shepard, transformada em imagens pelas lentes de Wenders, dá conta de delinear o percurso acidentado da negação à manifestação do afeto que, cedo ou tarde, inundará o coração daqueles homens. É de chamar a atenção também a fotografia colorida do filme. Ela é uma responsabilidade de Franz Lustig, conterrâneo do diretor que colaborara com ele em seu filme anterior, Medo e obsessão (Land of plenty, 2004) e voltaria a colaborar com ele em seu filme seguinte, Palermo shooting (idem, 2008), que permanece inédito no Brasil.


Com este filme, o realizador repousa sua reflexão sobre a necessidade de se criar e manter vínculos com as pessoas que nos circundam, e aponta sobre a importância de não se dissociar totalmente das raízes as quais se tem. Sua câmera captura o vazio, e é pontilhada por um senso de humanidade muito acurado, que ecoa por toda a narrativa O contraponto das cores estouradas com as personalidades áridas dos personagens é uma mistura eficiente, que também seria adotada por Wong Kar-Wai em Um beijo roubado (My blueberry nights, 2007) apenas dois anos depois. Até mesmo um dos pôsteres do filme oferece essa composição imagética contrastiva, que assinala a intensidade dramática das trajetórias de Howard, Sky e Earl, que vão se cruzando a partir da procura intensa do protagonista por seu filho. Estrela solitária vai na contramão de todo maniqueísmo, centrando sua observação nos traços mais humanos que os personagens podem apresentar. O filme também marca a quarta ocasião em que Sam Shepard e Jessica Lange trabalham juntos, o que não acontecia desde Crimes do coração (Crimes of the heart, 1986). É notável a sintonia dos parceiro de cena, à vontade nos papéis de amantes dessa vez.
Como se pode perceber ao longo de sua duração, Estrela solitária é uma obra em que Wim Wenders se apropria belamente de uma das insígnias mais notáveis da cultura estadunidense – o gênero western – para discorrer sobre a eterna procura do homem por afeto. Por mais que tenha se embrutecido com o passar do tempo e a constante e sucessiva interpretação de personagens rústicos, Howard ainda preserva uma lacuna que só pode ser preenchida com carinho, tal qual o filho que encontra e as mulheres que cruzam seu caminho. A todo ato de agressividade praticado por ele, subjaz uma forte tendência à amabilidade e ao bem-querer, que ele insiste em sublimar por vicissitudes portentosas. Mas, a cada minuto de sua caminhada rumo ao reencontro, matizada pelo diretor no já citado aspecto policromático, essa rusticidade vai sofrendo o seu degelo.

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