19 de mai. de 2011

Espreitando pelas frestas da vontade em Pecados íntimos


Muitas vezes, falta coragem ao cinema hollywoodiano para colocar o dedo em certas feridas do comportamento humano, que não são uma exclusividade de um povo ou de uma época. Felizmente, ainda há realizadores intrépidos, que cruzam a fronteira entre o real e o edulcorado para contar histórias sobre pessoas que podem ser ou estar muito próximas. Pecados íntimos (Little children, 2006), de Todd Field, está aí para comprovar essa máxima,e mexer com certas emoções que muitos preferem manter veladas. Por meio da história de vida de Sarah Pierce (Kate Winslet), o diretor fala sobre pessoas deslocadas em seus cotidianos e da ânsia de buscar um pouco mais do que já se tem. Ela é uma mulher jovem, bonita e atraente, uma dona de casa dessas que podem ser facilmente associáveis a alguém que se conhece. Seu casamento não vai bem das pernas pelo fato de o marido não mais lhe dar a devida atenção, o que decorre de seu vício em pornografia na internet, adquirido quase repentinamente. Esse dado de sua vida a aproximará quase inevitavelmente - o advérbio aqui merece ser assinalado - de um vizinho chamado Brad Adamson(Patrick Wilson), tão em desalento no casamento quanto ela. Sua esposa Kathy, vivida com talento por Jennifer Connelly.
A aproximação entre Sarah e Brad são o modo que Field tem de tratar a respeito de um assunto que atravessa a existência humana: o confronto entre moral e desejo. Muitas vezes incompatíveis, essas duas esferas insistem em tentar se anular para ter o absolutismo, cada qual ao seu modo. De um lado, o desejo, inserido no id, se se considerar uma perspectiva freudiana e, do outro, as interdições, que vão sendo as minadoras da vontade de fazer qualquer coisa, que estão a cargo, ainda na mesma perspectiva, do superego. É um conflito dessa natureza que a personagem passa a viver depois de conhecer seu vizinho, até o dia em que decide, num ímpeto de desejo, dar um beijo nele na frente das outras mulheres da vizinhança. Pecados íntimos tem um estudo de personagens muito interessantes, e o cineasta se vale de alguns arquétipos para traçar seu painel realista acerca dos impedimentos que cerceiam o comportamento humano em diversas esferas. O filme foi escrito com base no livro de Tom Perrotta, a cargo dele mesmo e de Field, e acerta ao se propor fazer essa radiografia. O título original é um pouco mais eficiente em suas intenções, por ser mais preciso. Os personagens do filme, de fato, agem como pequenas crianças. Mas eles também, de uma forma ou de outra, têm seus pecados ocultos.
O enredo ainda abre espaço para uma subtrama envolvendo um pedófilo em processo de tentativa de reintegração ao convívio social, algo que todas as alas do bairro, mesmo as que não parecem tão severas, não são capazes de admitir. Ronald (JackieEarle Haley) só quer uma nova chance de pertencer àquele lugar e àquela vida, mas esta lhe é negada o tempo todo. A única que ainda parece crédula em sua recuperação é sua mãe, uma pessoa adorável e capaz de tudo pelo bem-estar do filho. Somadas, as duas tramas reverberam com força e apontam para a necessidade que muitos adultos têm de deixar seu lado infantil adormecido, e começar a enxergar a vida sob o ângulo da maturidade. Pecados íntimos é um filme sobre máscaras, receios, mecanismos de defesa e autonegação que incomoda em muitos momentos, por estar disposto a se oferecer com uma abordagem agradável. Quando são confrontados com a necessidade de dar novos passos rumo a uma evolução, tanto Sarah quanto Brad e os demais personagens hesitam, pois não se sentem em condições para isso. Por assinalar esse aspecto de suas personalidades, o filme muitas vezes se mostra devastador. A expressão "dedo na ferida" cabe perfeitamente aqui, e Field trava um diálogo interessante com Madame Bovary, clássico da literatura francesa de Gustave Flaubert. Isso acontece na sequência em que Sarah está reunida com as vizinhas e começa a discorrer sobre as armadilhas da vontade, tal qual ocorreu à protagonista do livro.


Todd Field não conta sua primeira história de vontades encobertas. Seu filme anterior, Entre quatro paredes (In the bedroom, 2001), também fala a respeito das convenções sociais estabelecidas há muito, que precisam ser mantidas para um funcionamento ordenado do todo. À semelhança de Sarah e Brad, o filme conta a história de um casal em processo de luto pela perda de um filho, depois de ver seu envolvimento com uma mulher recém-chegada à sua cidade. Portanto, com Pecados íntimos, Field reafirma sua competência como exumador de agruras particulares, lançando-as ao alcance do espectador, embora procure se manter como um observador imparcial do desenrolar dos fatos. A câmera não está ali para fazer julgamentos, mas também não se preocupa em encobrir as falhas e os desvios cometidos pelos protagonistas. O que começou como uma amizade derivada dos encontros regulares no parque por causa dos filhos logo se transforma em um caso extraconjugal, uma relação marcada pela sofreguidão de ambos, que veem naquele relacionamento uma vávula de escape para sua frustrações. Os personagens apresentam um forte entrosamento em cena, proporcionado pelo contato acertado entre Winslet e WIlson, o que lhes permite inclusive encarar as cenas de nudez com grande naturalidade. Nesse ponto, o filme também ostenta uma certa crueza, notada em uma sequência passada em uma lavanderia. Winslet vem se firmando, filme a filme, como uma das melhores atrizes de sua geração, e seu trabalho em Pecados íntimos lhe valeu a quinta indicação ao Oscar, mais uma vez na categoria de melhor atriz, perdida em favor da atuação mimética de Helen Mirren em A rainha (The queen, 2006). Sua série de injustiças só viria a terminar com sua vitória por O leitor (The reader, 2008), outro grande papel de sua carreira. Wilson também não deixa a desejar, e esbanja talento na pele de um homem inseguro e covarde no trato com a esposa, que não é capaz de colocar um ponto final no casamento, mas também não abre mão de estar ao lado da amante.
Pecados íntimos recebeu outras indicações na edição 2007 do Oscar, todas merecidas e cujas vitórias seriam igualmente dignas: ator coadjuvante para Haley e roteiro adaptado. Trata-se de um filme de muitas qualidades, que não oferece a abordagem mais fácil a maior parte do tempo, e que induz a uma reflexão importante sobre os valores que têm nos regido e que temos passado ao mundo e, no caso de quem é pai ou mãe, aos seus filhos. Field fala o tempo todo de silêncio, escapismo e imobilidade, confrontando o espectador a sair de uma possível zona de conforto e levantando muitas indagações, a maioria das quais permanece sem resposta, ou com uma resposta possível entre tantas outras. Todos os nomes envolvidos oferecem o melhor de si, e os atores estão em grande simbiose dramática. Seu final rico em possibilidades de interpretação é um achado, e a abertura de uma porta que, uma vez destrancada, pode permanecer longamente entreaberta.

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