17 de mai. de 2011

Embates entre realidade e ilusão em Você vai conhecer o homem dos seus sonhos


Um dos trabalhos mais recentes de Woody Allen, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger, 2010) é também um de seus filmes mais subestimados. Os elementos que respondem pela sua força e intensidade são exatamente aqueles que foram mais achincalhados por boa parte do público e da crítica assim que puseram nele seus olhos. Trata-se de uma tremenda injustiça, que pode ser reparada assistindo-se ao filme pela segunda vez. Aqui, o diretor emprega novamente um time de atores talentosos e aciona sua habilidade para tratar de assuntos que, invariavelmente, comparecem aos seus filmes. O argumento é resumido já no título do filme, que ganhou interpretação diferente do original no Brasil. Sua tradução literal é uma metáfora interessante para a morte, um homem alto e escuro, e dá conta de exprimir o pessimismo que atravessa a obra. Batizado como foi no Brasil, soa mais “gracioso” e assemelhado a um daqueles romances água-com-açúcar. Seu filme imediatamente antecessor padeceu do mesmo mal: Tudo pode dar certo (Wheatever works, 2009) ficou muito mais “fofinho” que simplesmente traduzir como “Vale o que der certo”.
Mas em se tratando do filme atual, Allen lança mão de alguns lugares-comuns para discorrer, com a sua habitual verborragia, sobre o quanto a vida pode ser vazia de sentido, ou simplesmente vazia. Dessa vez, ele se vale de personagens que tentam novos rumos para suas trajetórias, mas que não conseguem se desvencilhar de obstáculos muito fortes e intransponíveis: eles mesmos. Helena (Gemma Jones) acabou de ser abandonada por Alfie (Anthony Hopkins), e sua desorientação pelo fim de um longo casamento a transformou na mulher mais crédula desse mundo. Sally (Naomi Watts), sua filha, é outra que acabará por adotar um comportamento algo escapista. Ela é casada há anos com Roy (Josh Brolin), mas carece de mais fantasia em sua vida, algo que o marido, um médico que largou a profissão para se tornar um escritor frustrado, não tem lhe proporcionado. Então, isso a leva a olhar mais atentamente para seu chefe em uma galeria de arte, o conquistador Greg (Antonio Banderas). Roy, por sua vez, vai se engraçando para cima de Dia (Freida Pinto), a vizinha do apartamento em frente que está sempre vestida de vermelho. A desolação de Helena a leva a confiar cegamente nas previsões de uma cartomante, e a personagem é apenas uma das várias formas que o diretor encontrou para falar a respeito dos muros de afastamento da realidade que muitas pessoas insistem em erguer para si.
Cada qual à sua maneira, os personagens de Você vai conhecer o homem dos seus sonhos tratam de procurar caminhos para se realizar como seres humanos, mesmo que, no fundo, saibam que não vão conseguir. Alfie, por exemplo, adota um comportamento típico do macho em fase de autofirmação, já que se propõe a recuperar a “juventude perdida” se envolvendo com Charmaine (Lucy Punch), uma prostituta que não tem um pingo de noção. É assim, com cada um deles construindo seu castelo de cartas, que Allen vai movimentando a trama do filme, que foi considerado por muitos como um trabalho aquém das expectativas, em se tratando do diretor. Uma das razões que levaram à formulação dessa opinião foi o fato de Allen colocar na tela novamente personagens sem carisma, segundo afirmou um crítico. Segundo ele, quase todos estão apáticos, com exceção de Jones, que injeta vigor ao filme. A afirmação é digna de toda a discordância, já que o filme é mais um atestado da habilidade do diretor em analisar, dessa vez pelo viés tragicômico, as incongruências entre vontades e a realidade. Tudo no filme parece apontar para uma comédia simples e brincalhona, mas o subtexto do filme é de um pessimismo que poucas vezes se viu no cinema do realizador novaiorquino. O cenário talvez tenha contribuído para a acentuação desse aspecto, já que Allen retorna ao continente europeu, mas especificamente a Londres, onde já havia rodado três filmes. O reencontro do cineasta com a capital inglesa pode ter reacendido a chama de uma visão amarga da realidade, embora seus roteiros muitas vezes estejam além de referências territoriais. Houve quem dissesse que os personagens têm uma aura por demais novaiorquina, mas o fato é que qualquer um deles é símbolo de uma universalidade, já que atitude escapista vem sendo a escolha de muitas pessoas em um mundo com cada vez mais volatilidade.
Allen retoma alguns aspectos que são centrais em sua obra com esse filme. Novamente, a temática da magia nos é apresentada, aqui por meio da personagem Crystal (Pauline Collins), a cartomante que dá pílulas de felicidade instantânea para Helena, que se convence de tudo o que ela diz. Vários outros filmes do diretor trazem essa questão. Para citar dois exemplos recentes, há O escorpião de jade (The curse of jade scorpion, 2001) e Scoop – O grande furo (Scoop, 2006), em que há personagens mágicos cuja presença na trama é fundamental. Esse interesse pelo assunto, no caso de Você vai conhecer o homem dos seus sonhos, é um índice agregador de significado, e também pode ser estendido para os demais filmes em que a questão aparece tratada: a realidade pode ser muito decepcionante, então por que não recorrer à mágica, à ilusão? É o que fazem Helena, Alfie, Roy e Sally, enclasurando-se em suas redomas de sonhos, sem a menor disposição para sair delas. O filme tem algumas citações de Shakespeare na abertura e no desfecho, e elas reafirmam o quanto há de bizarrice na vida e nos caminhos que, muitas vezes, as pessoas vão tomando.

A fotografia é um aspecto que também contribui para dar um ar de opressão aos ambientes que os personagens frequentam. O responsável por ela é Vilmos Zsigmond, exatamente o mesmo profissional que havia assinado a fotografia de O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007) e arquitetara o clima de intimismo do filme londrino anterior do cineasta. Zsigmond é espetacular na captura dos dias sombrios de Londres, e contrasta-os com a personalidade solar de Dia, cujo nome, para lusófonos, é a tradução perfeita da claridade. Suas lentes matizam os espaços abertos com a habilidade de um esteta afeito às extravagâncias imagéticas, ainda que Allen sempre tenda a uma montagem final contida, em que os desempenhos dos atores e o texto falam muito mais alto que qualquer outro aspecto técnico. A direção de arte de Dominic Masters também é primorosa, e demonstra que esse é um filme com conteúdo e também com sua parcela de beleza. As acusações que pesam contra Allen de que ele estava menos inspirado aqui até podem ser legítimas, mas não desabonam em um milímetro sequer as qualidades de Você vai conhecer o homem dos seus sonhos. O filme é até mesmo incômodo em algumas passagens, por conta das soluções “fáceis” que os personagens vão dando para os seus dramas interiores. Esse detalhe torna o filme fronteiriço entre a comédia e o drama, que, no fundo, não são conceitos excludentes entre si, mas, na verdade, complementares. O que os diferencia é o olhar que se lança sobre eles.
É notável o diálogo que Allen trava com o Shakespeare de Sonho de uma noite de verão, uma das peças mais famosas do bardo, que trata a respeito dos encontros e desencontros do coração, e de como os homens podem ser instáveis diante da vida e do amor. Tal diálogo havia sido travado antes, mais especificamente em Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996), filme no qual uma série de pessoas atirava a esmo na esperança de se realizar amorosamente. Allen também traz outra vez a arte como fonte de dirimição de inquietudes. Roy é mais um escritor na extensa galeria de personagens que abraçaram esse ofício, e também não está sozinho quando o assunto é frustração na profissão. Em títulos como Desconstruindo Harry (Desconstructing Harry, 1997) e Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999), também apareciam tipos que buscavam nos livros uma forma de se comunicar com o mundo. Ao longo de sua duração, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos reserva pequenas surpresas e alguns desdobramentos que se tornam esperados em determinada altura, mas que vão sendo costurados com traquejo por um artista que sempre está em forma, mesmo que não seja sempre uma unanimidade.

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