31 de mai. de 2011
Lemon tree e a necessidade de pontes comunicativas
Associado aos conflitos permanentes por conta de divergências históricas que seguem se arrastando, o Oriente Médio é muitas vezes relegado a décimo plano no circuito comercial. Esse é um dos principais motivos para que se atente para Lemon tree (Etz limon, 2007), filme de Eran Riklis que trata de modo indireto das dificuldades de comunicação e entendimento entre palestinos e israelenses. O longa-metragem é uma das raras produções daquela região do globo a alcançar o solo brasileiro, a despeito da produção relativamente profusa dali. E sua abordagem para uma temática notadamente recorrente é pelo viés parabólico, uma vez que o diretor se vale da figura de uma mulher e seu pomar de limoeiros. Ela atende pelo nome de Salma Zidane (Hiam Abbass), e cuida daquela plantação com extrema dedicação, colocando sua alma no que faz.
O impasse da narrativa se dá quando o ministro da Defesa de Israel se muda para a casa contígua à de Salma, e seus homens de confiança passam a acreditar que os limoeiros oferecem um grande perigo à sua segurança, levando-os a cogitar a possibilidade de derrubá-los. Uma vez instaurado esse conflito, o diretor vai expandindo seu domínio narrativo para falar, nesse microcosmos, do quanto é necessário o diálogo ao ser humano, independentemente das circunstâncias em que ele se encontra. O grande entrave que permeia a trama é a decisão de derrubada da plantação e a resistência da proprietária em permiti-lo, por aqueles limoeiros representarem seu sustento e concentrarem uma importante memória afetiva. Some-se a isso o agravante de ela ser palestina, um dado que acentua a hostilidade que lhe é imposta. Por conta de sua situação de ameaça, Salma recorre a um advogado que se sensibiliza com a sua causa, mas que não a ilude e afirma peremptoriamente que sua vitória tem probabilidades remotas.
Lemon tree é um filme extremamente simples e que permite reflexões profundas acerca do trato com o ser humano e de como se pode relativizar uma verdade em prol da defesa de um interesse. Pouco importa aos assessores do ministro se a fonte de sustento de Salma são aqueles limões. Mais vale a segurança incondicional dele, a despeito dos prejuízos que a mulher pode ter. Por meio desse conflito particular, Riklis delineia um painel mais amplo, de alcance global, da falta de diálogo e da inclinação em entender o outro. O conceito antropológico de alteridade é bastante cabível nesse contexto, e consiste na capacidade de se colocar no lugar do outro, vendo-se como ele, enxergando suas peculiaridades, limitações, necessidades, anseios e qualidades. Salma é tolhida desse direito, e empreende uma cruzada desesperada pela sua concretização. Nesse aspecto, a abordagem do realizador é bastante humanista, e examina com uma lente de aumento a milenar “defeito” que perpassa a relação entre judeus e árabes, impassíveis um ante ao outro.
A concisão do filme é outro de seus aspectos favoráveis. Lemon tree é um filme enxuto em sua duração, não se estendendo ou se reduzindo no tema que se propõe a tratar. E as questões levantadas pelo diretor são tão corriqueiras quanto urgentes, das quais não se deveria fugir. Trata-se de uma obra que proporciona um debate salutar a respeito da real dimensão do humano em um mundo em que a dignidade do outro é cada vez mais pisoteada e lacerada. Justamente em um tempo no qual se mencionam tanto os direitos humanos, ainda muito distantes de uma aplicação efetiva. Salma não é levada em consideração quando se pensa na ideia de derrubar seus limoeiros, apenas se analisa a segurança de um homem que é visado por vários inimigos. A luta da protagonista é inglória, já que ela está se opondo a uma importante autoridade. Em meio à busca da personagem por justiça, ainda há espaço para que ela e seu advogado ensaiem um romance, o qual, todavia, nunca se mostra totalmente desenvolvido, concentrando-se muito mais nos olhares e nos pequenos gestos. Através do personagem do advogado, Riklis faz uma bela homenagem ao futebol brasileiro, na cena em que ele veste um casaco da Seleção quando vai ao encontro de sua cliente.
O filme teve uma carreira curtíssima nas salas de exibição cariocas, depois de uma passagem pela edição de 2008 do festival de Berlim, ano em que títulos como Rebobine, por favor (Be kind rewind, 2007) e Tropa de elite (idem, 2007) desfilavam para o público de uma das mostras mais tradicionais da Europa. Como já foi mencionado, Lemon tree se vale da simplicidade e da objetividade para narrar uma saga pessoal que serve como metáfora para uma análise da intolerância que reina entre os homens nos dias atuais, e de como se faz necessário o estabelecimento de pontes comunicativas para o encaminhamento de resoluções proveitosas para ambas as partes envolvidas em um conflito. Riklis não faz cinema panfletário, embebido em juízos de valor particulares, mas assinala a urgência de revisão de certas posturas, como as que envolvem a questão Israel-Palestina. O longa-metragem se insere em uma safra de títulos interessantes vindo daquela parte do mundo, entre os quais estão A banda (Bikur Ha-Tizmoret, 2007), de seu homônimo Eran Kolirin, e Valsa com Bashir (Vals im Bashir, 2008), de Ari Folman. Os três se oferecem como poderosas ferramentas de reflexão sobre a condição do homem palestino atual, mas não se circunscrevem em fronteiras geográficas. Para além delas, ensaiam sobre vícios e virtudes da natureza humana e do quanto ainda podemos ser inábeis no contato com o outro e na sua aceitação.
Vale ressaltar também o talento de Hiam Abass, que confere veracidade e intensidade à sua personagem, cuja história de vida é inspirada em um caso real. Cada gesto e cada olhar lançado por ela evidenciam uma mulher que aprendeu a ser forte a e lutar ferozmente contra qualquer um que a ameace. E Riklis expõe seu drama e conduz a sua história ao final sem necessariamente optar pela resolução mais fácil, mas pela mais crível e possível de se concretizar em uma realidade cotidiana. A atriz já havia trabalhado com o diretor em A noiva síria (The syrian bride, 2004), que foi seu primeiro trabalho atrás das câmeras. A seu favor, também está uma beleza madura e desconcentrante, que ela empresta à personagem, e que justifica plenamente o encanto despertado em seu advogado. Ela também desenvolve uma relação de afeto silencioso e velado com a mulher do ministro, que se opõe ao que estão fazendo com sua plantação, mas não se posiciona firmemente para impedir tamanha crueldade. O ministro, por sua vez, deixa que pensem por ele, e se resigna da decisão tomada por seus assessores, como se fosse a única possível de ser posta em prática. Nessa luta de Davi contra Golias, como alguém no próprio filme dá conta de definir apropriadamente, emergem as questões mais urgentes de um Estado que se autoimpõe com audácia a um povo de liderança governamental ainda obscura, em particular a uma mulher que tateia seu próprio espaço e se apega a um instrumento concreto que é, em última instância, um signo de sua sanidade.
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24 de mai. de 2011
Separações: buscando definir o indefinível
Independentemente de época ou espaço geográfico, o tema das relações amorosas sempre se configura como um terreno fértil para reflexões e análises que podem ser muito interessantes e relevantes. São inúmeros os realizadores que decalcam desse assunto suas visões, ora bem-humoradas, ora trágicas. Separações (idem, 2002), de Domingos Oliveira, engrossa uma lista já bastante longa de filmes que abordam os relacionamentos, e triunfa sobre uma grande quantidade de títulos por sua aposta na sinceridade. O trabalho do diretor brasileiro é o de se agarrar a uma proposta que, em si mesma, está longe de ser inédita: percorrer as fases do amor. Estruturado em episódios, o filme focaliza a vida amorosa de Glorinha (Priscila Rozenbaum) e Cabral (o próprio Domingos), um casal como qualquer outro, que vivencia seus altos e baixos, absolutamente naturais depois de tantos anos juntos.
Um dos aspectos que logo salta aos olhos no casal é o fato de Cabral ser bem mais velho que Glorinha. Eles estão nitidamente insatisfeitos com o casamento, e tomam a decisão de “dar um tempo”, expressão que causa aos nervos de certos indivíduos um efeito similar ao de um trem fantasma. Aquele tempo reivindicado por Glorinha logo transformar-se-á em um suplício para Cabral, que não pode admitir e muito menos conviver com a distância daquela que ele considera a mulher da sua vida. O que começa com um afastamento premeditado e temporário torna-se, na verdade, uma separação. Mas, como o próprio título plurálico indica, haverá mais de uma separação na trajetória do casal, e Domingos tem um grande senso de verdade para analisá-las sob um filtro afetivo interessantíssimo. Glorinha acaba conhecendo e se envolvendo com Diogo (Fábio Junqueira), um arquiteto que tem a sua idade. Com isso, está armada a teia de idas e vindas que o casal protagonista passará a viver, e o espectador poderá, em diversos momentos, encontrar índices de identificação, encarando o relacionamento dos dois como um espelho de sua vida amorosa.
Como dito anteriormente, a estrutura de Separações é episódica, sendo cada um desses episódios uma fase distinta do relacionamento de Glorinha e Cabral. Entretanto, um aspecto interessante é o fato de as fases começarem a partir do intervalo proposto por ele. Dali em diante, surgem cinco episódios que buscam dar conta da complexidade de sentimentos que podem se instaurar na pessoa que, depois de se dar conta de uma decisão precipitada, tenta a todo custo revogar sua própria decisão. É Cabral que traz a ideia de dar um tempo e, depois, é ele mesmo quem demonstra arrependimento pela sua atitude. E, a cada novo momento dessa separação do casal, outras pessoas vão entrando em questão, como Ricardo (Ricardo Kosovski), um ex-namorado de Glorinha, Maribel (Nanda Rocha), namorada de Ricardo, e até a filha de Cabral, Júlia (Maria Ribeiro), que, curiosamente, passa por uma crise em seu casamento. Com todas essas pessoas envolvidas no processo longo do casal principal, Domingos traça, muitas vezes, um retrato afetuoso e engraçado dos relacionamentos, mostrando o óbvio e o bizarro de uma convivência a dois. Separações exala sinceridade, e seu conteúdo sublima a maior parte do tempo o aspecto encenatório que é necessário ao desenvolvimento do filme. Os personagens dialogam com o espectador na medida em que compartilham suas angústias com uma câmera paciente, que perscruta o mais íntimo dos seus sentimentos.
A estética adotada por Domingos Oliveira aqui é claramente teatral. O diretor não renega sua paixão pelos palcos, onde ele sempre está, seja como ator, seja com um texto seu sendo encenado. Ele é responsável por filmes que se inscreveram na história do cinema brasileiro, como Edu Coração de Ouro (idem, 1967) e Todas as mulheres do mundo (idem, 1966), sendo este último estrelado por Leila Diniz. No caso da montagem de Separações, é nítida a forma como os atores se posicionam em cena e diante da câmera, sempre fazendo menção de um movimento cênico que permite um diálogo e uma ponte com o gestual mais aparentado ao teatro. Além disso, a edição é ágil, com cortes precisos a maior parte do tempo, embora também haja alguns planos-sequência de duração extensa, como quando Cabral está sobre a poltrona de seu apartamento e não consegue se desvencilhar da lembrança de Glorinha, que surge aterradora em sua mente. Essa mesma cena também proporciona um paralelo com o humor adotado por Woody Allen, bem como se presta a uma associação com o fato de o diretor novaiorquino ter criado para si uma persona cinematográfica que muitos confundem com o próprio diretor. Como Allen, Domingos é extremamente verborrágico, mas com uma dicção que muitas vezes torna suas falas incompreensíveis, algo que responde também pela graça de suas tiradas. O diretor se propõe a fazer uma análise das frustrações que podem advir da falta de realização no amor, embasando seu percurso na máxima “É melhor se arrepender de ter feito do que de não ter feito.”
Calcado nessa estética da sinceridade, Domingos Oliveira faz de Separações um filme bonito e empolgante em muitas passagens. Seu trabalho de exumador da angústia de amar foi bem recebido pela crítica e também pelo público, garantindo-lhe uma exibição longeva no circuito comercial. Pelos festivais onde esteve, o longa também alcançou reconhecimento, tendo sido premiado no festival de Gramado nas categorias de melhor atriz e melhor atriz coadjuvante, respectivamente Priscila Rosenbaum e Suzana Saldanha, que interpreta Laura, a amiga de longa data e confidente de Cabral. No fundo, a noção de separação apresentada pelo cineasta é muito otimista, apesar de ele revestir seu filme de um aspecto um tanto cômico-trágico. É um movimento inverso ao realizado por Allen no recente Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger, 2010), em que ele emprega uma aura pseudofeliz, que encobre um discurso impregnado de desalento. Ao final dos cinco episódios que marcam Separações, o efeito causado ao espectador pode ser muito semelhante ao de uma saída de recente de uma sessão de terapia, ou mesmo a de encerramento de uma conversa com amigos, como as que abrem e fecham o filme, de intenso efeito catártico.
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19 de mai. de 2011
Espreitando pelas frestas da vontade em Pecados íntimos
Muitas vezes, falta coragem ao cinema hollywoodiano para colocar o dedo em certas feridas do comportamento humano, que não são uma exclusividade de um povo ou de uma época. Felizmente, ainda há realizadores intrépidos, que cruzam a fronteira entre o real e o edulcorado para contar histórias sobre pessoas que podem ser ou estar muito próximas. Pecados íntimos (Little children, 2006), de Todd Field, está aí para comprovar essa máxima,e mexer com certas emoções que muitos preferem manter veladas. Por meio da história de vida de Sarah Pierce (Kate Winslet), o diretor fala sobre pessoas deslocadas em seus cotidianos e da ânsia de buscar um pouco mais do que já se tem. Ela é uma mulher jovem, bonita e atraente, uma dona de casa dessas que podem ser facilmente associáveis a alguém que se conhece. Seu casamento não vai bem das pernas pelo fato de o marido não mais lhe dar a devida atenção, o que decorre de seu vício em pornografia na internet, adquirido quase repentinamente. Esse dado de sua vida a aproximará quase inevitavelmente - o advérbio aqui merece ser assinalado - de um vizinho chamado Brad Adamson(Patrick Wilson), tão em desalento no casamento quanto ela. Sua esposa Kathy, vivida com talento por Jennifer Connelly.
A aproximação entre Sarah e Brad são o modo que Field tem de tratar a respeito de um assunto que atravessa a existência humana: o confronto entre moral e desejo. Muitas vezes incompatíveis, essas duas esferas insistem em tentar se anular para ter o absolutismo, cada qual ao seu modo. De um lado, o desejo, inserido no id, se se considerar uma perspectiva freudiana e, do outro, as interdições, que vão sendo as minadoras da vontade de fazer qualquer coisa, que estão a cargo, ainda na mesma perspectiva, do superego. É um conflito dessa natureza que a personagem passa a viver depois de conhecer seu vizinho, até o dia em que decide, num ímpeto de desejo, dar um beijo nele na frente das outras mulheres da vizinhança. Pecados íntimos tem um estudo de personagens muito interessantes, e o cineasta se vale de alguns arquétipos para traçar seu painel realista acerca dos impedimentos que cerceiam o comportamento humano em diversas esferas. O filme foi escrito com base no livro de Tom Perrotta, a cargo dele mesmo e de Field, e acerta ao se propor fazer essa radiografia. O título original é um pouco mais eficiente em suas intenções, por ser mais preciso. Os personagens do filme, de fato, agem como pequenas crianças. Mas eles também, de uma forma ou de outra, têm seus pecados ocultos.
O enredo ainda abre espaço para uma subtrama envolvendo um pedófilo em processo de tentativa de reintegração ao convívio social, algo que todas as alas do bairro, mesmo as que não parecem tão severas, não são capazes de admitir. Ronald (JackieEarle Haley) só quer uma nova chance de pertencer àquele lugar e àquela vida, mas esta lhe é negada o tempo todo. A única que ainda parece crédula em sua recuperação é sua mãe, uma pessoa adorável e capaz de tudo pelo bem-estar do filho. Somadas, as duas tramas reverberam com força e apontam para a necessidade que muitos adultos têm de deixar seu lado infantil adormecido, e começar a enxergar a vida sob o ângulo da maturidade. Pecados íntimos é um filme sobre máscaras, receios, mecanismos de defesa e autonegação que incomoda em muitos momentos, por estar disposto a se oferecer com uma abordagem agradável. Quando são confrontados com a necessidade de dar novos passos rumo a uma evolução, tanto Sarah quanto Brad e os demais personagens hesitam, pois não se sentem em condições para isso. Por assinalar esse aspecto de suas personalidades, o filme muitas vezes se mostra devastador. A expressão "dedo na ferida" cabe perfeitamente aqui, e Field trava um diálogo interessante com Madame Bovary, clássico da literatura francesa de Gustave Flaubert. Isso acontece na sequência em que Sarah está reunida com as vizinhas e começa a discorrer sobre as armadilhas da vontade, tal qual ocorreu à protagonista do livro.
Todd Field não conta sua primeira história de vontades encobertas. Seu filme anterior, Entre quatro paredes (In the bedroom, 2001), também fala a respeito das convenções sociais estabelecidas há muito, que precisam ser mantidas para um funcionamento ordenado do todo. À semelhança de Sarah e Brad, o filme conta a história de um casal em processo de luto pela perda de um filho, depois de ver seu envolvimento com uma mulher recém-chegada à sua cidade. Portanto, com Pecados íntimos, Field reafirma sua competência como exumador de agruras particulares, lançando-as ao alcance do espectador, embora procure se manter como um observador imparcial do desenrolar dos fatos. A câmera não está ali para fazer julgamentos, mas também não se preocupa em encobrir as falhas e os desvios cometidos pelos protagonistas. O que começou como uma amizade derivada dos encontros regulares no parque por causa dos filhos logo se transforma em um caso extraconjugal, uma relação marcada pela sofreguidão de ambos, que veem naquele relacionamento uma vávula de escape para sua frustrações. Os personagens apresentam um forte entrosamento em cena, proporcionado pelo contato acertado entre Winslet e WIlson, o que lhes permite inclusive encarar as cenas de nudez com grande naturalidade. Nesse ponto, o filme também ostenta uma certa crueza, notada em uma sequência passada em uma lavanderia. Winslet vem se firmando, filme a filme, como uma das melhores atrizes de sua geração, e seu trabalho em Pecados íntimos lhe valeu a quinta indicação ao Oscar, mais uma vez na categoria de melhor atriz, perdida em favor da atuação mimética de Helen Mirren em A rainha (The queen, 2006). Sua série de injustiças só viria a terminar com sua vitória por O leitor (The reader, 2008), outro grande papel de sua carreira. Wilson também não deixa a desejar, e esbanja talento na pele de um homem inseguro e covarde no trato com a esposa, que não é capaz de colocar um ponto final no casamento, mas também não abre mão de estar ao lado da amante.
Pecados íntimos recebeu outras indicações na edição 2007 do Oscar, todas merecidas e cujas vitórias seriam igualmente dignas: ator coadjuvante para Haley e roteiro adaptado. Trata-se de um filme de muitas qualidades, que não oferece a abordagem mais fácil a maior parte do tempo, e que induz a uma reflexão importante sobre os valores que têm nos regido e que temos passado ao mundo e, no caso de quem é pai ou mãe, aos seus filhos. Field fala o tempo todo de silêncio, escapismo e imobilidade, confrontando o espectador a sair de uma possível zona de conforto e levantando muitas indagações, a maioria das quais permanece sem resposta, ou com uma resposta possível entre tantas outras. Todos os nomes envolvidos oferecem o melhor de si, e os atores estão em grande simbiose dramática. Seu final rico em possibilidades de interpretação é um achado, e a abertura de uma porta que, uma vez destrancada, pode permanecer longamente entreaberta.
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17 de mai. de 2011
Embates entre realidade e ilusão em Você vai conhecer o homem dos seus sonhos
Um dos trabalhos mais recentes de Woody Allen, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger, 2010) é também um de seus filmes mais subestimados. Os elementos que respondem pela sua força e intensidade são exatamente aqueles que foram mais achincalhados por boa parte do público e da crítica assim que puseram nele seus olhos. Trata-se de uma tremenda injustiça, que pode ser reparada assistindo-se ao filme pela segunda vez. Aqui, o diretor emprega novamente um time de atores talentosos e aciona sua habilidade para tratar de assuntos que, invariavelmente, comparecem aos seus filmes. O argumento é resumido já no título do filme, que ganhou interpretação diferente do original no Brasil. Sua tradução literal é uma metáfora interessante para a morte, um homem alto e escuro, e dá conta de exprimir o pessimismo que atravessa a obra. Batizado como foi no Brasil, soa mais “gracioso” e assemelhado a um daqueles romances água-com-açúcar. Seu filme imediatamente antecessor padeceu do mesmo mal: Tudo pode dar certo (Wheatever works, 2009) ficou muito mais “fofinho” que simplesmente traduzir como “Vale o que der certo”.
Mas em se tratando do filme atual, Allen lança mão de alguns lugares-comuns para discorrer, com a sua habitual verborragia, sobre o quanto a vida pode ser vazia de sentido, ou simplesmente vazia. Dessa vez, ele se vale de personagens que tentam novos rumos para suas trajetórias, mas que não conseguem se desvencilhar de obstáculos muito fortes e intransponíveis: eles mesmos. Helena (Gemma Jones) acabou de ser abandonada por Alfie (Anthony Hopkins), e sua desorientação pelo fim de um longo casamento a transformou na mulher mais crédula desse mundo. Sally (Naomi Watts), sua filha, é outra que acabará por adotar um comportamento algo escapista. Ela é casada há anos com Roy (Josh Brolin), mas carece de mais fantasia em sua vida, algo que o marido, um médico que largou a profissão para se tornar um escritor frustrado, não tem lhe proporcionado. Então, isso a leva a olhar mais atentamente para seu chefe em uma galeria de arte, o conquistador Greg (Antonio Banderas). Roy, por sua vez, vai se engraçando para cima de Dia (Freida Pinto), a vizinha do apartamento em frente que está sempre vestida de vermelho. A desolação de Helena a leva a confiar cegamente nas previsões de uma cartomante, e a personagem é apenas uma das várias formas que o diretor encontrou para falar a respeito dos muros de afastamento da realidade que muitas pessoas insistem em erguer para si.
Cada qual à sua maneira, os personagens de Você vai conhecer o homem dos seus sonhos tratam de procurar caminhos para se realizar como seres humanos, mesmo que, no fundo, saibam que não vão conseguir. Alfie, por exemplo, adota um comportamento típico do macho em fase de autofirmação, já que se propõe a recuperar a “juventude perdida” se envolvendo com Charmaine (Lucy Punch), uma prostituta que não tem um pingo de noção. É assim, com cada um deles construindo seu castelo de cartas, que Allen vai movimentando a trama do filme, que foi considerado por muitos como um trabalho aquém das expectativas, em se tratando do diretor. Uma das razões que levaram à formulação dessa opinião foi o fato de Allen colocar na tela novamente personagens sem carisma, segundo afirmou um crítico. Segundo ele, quase todos estão apáticos, com exceção de Jones, que injeta vigor ao filme. A afirmação é digna de toda a discordância, já que o filme é mais um atestado da habilidade do diretor em analisar, dessa vez pelo viés tragicômico, as incongruências entre vontades e a realidade. Tudo no filme parece apontar para uma comédia simples e brincalhona, mas o subtexto do filme é de um pessimismo que poucas vezes se viu no cinema do realizador novaiorquino. O cenário talvez tenha contribuído para a acentuação desse aspecto, já que Allen retorna ao continente europeu, mas especificamente a Londres, onde já havia rodado três filmes. O reencontro do cineasta com a capital inglesa pode ter reacendido a chama de uma visão amarga da realidade, embora seus roteiros muitas vezes estejam além de referências territoriais. Houve quem dissesse que os personagens têm uma aura por demais novaiorquina, mas o fato é que qualquer um deles é símbolo de uma universalidade, já que atitude escapista vem sendo a escolha de muitas pessoas em um mundo com cada vez mais volatilidade.
Allen retoma alguns aspectos que são centrais em sua obra com esse filme. Novamente, a temática da magia nos é apresentada, aqui por meio da personagem Crystal (Pauline Collins), a cartomante que dá pílulas de felicidade instantânea para Helena, que se convence de tudo o que ela diz. Vários outros filmes do diretor trazem essa questão. Para citar dois exemplos recentes, há O escorpião de jade (The curse of jade scorpion, 2001) e Scoop – O grande furo (Scoop, 2006), em que há personagens mágicos cuja presença na trama é fundamental. Esse interesse pelo assunto, no caso de Você vai conhecer o homem dos seus sonhos, é um índice agregador de significado, e também pode ser estendido para os demais filmes em que a questão aparece tratada: a realidade pode ser muito decepcionante, então por que não recorrer à mágica, à ilusão? É o que fazem Helena, Alfie, Roy e Sally, enclasurando-se em suas redomas de sonhos, sem a menor disposição para sair delas. O filme tem algumas citações de Shakespeare na abertura e no desfecho, e elas reafirmam o quanto há de bizarrice na vida e nos caminhos que, muitas vezes, as pessoas vão tomando.
A fotografia é um aspecto que também contribui para dar um ar de opressão aos ambientes que os personagens frequentam. O responsável por ela é Vilmos Zsigmond, exatamente o mesmo profissional que havia assinado a fotografia de O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007) e arquitetara o clima de intimismo do filme londrino anterior do cineasta. Zsigmond é espetacular na captura dos dias sombrios de Londres, e contrasta-os com a personalidade solar de Dia, cujo nome, para lusófonos, é a tradução perfeita da claridade. Suas lentes matizam os espaços abertos com a habilidade de um esteta afeito às extravagâncias imagéticas, ainda que Allen sempre tenda a uma montagem final contida, em que os desempenhos dos atores e o texto falam muito mais alto que qualquer outro aspecto técnico. A direção de arte de Dominic Masters também é primorosa, e demonstra que esse é um filme com conteúdo e também com sua parcela de beleza. As acusações que pesam contra Allen de que ele estava menos inspirado aqui até podem ser legítimas, mas não desabonam em um milímetro sequer as qualidades de Você vai conhecer o homem dos seus sonhos. O filme é até mesmo incômodo em algumas passagens, por conta das soluções “fáceis” que os personagens vão dando para os seus dramas interiores. Esse detalhe torna o filme fronteiriço entre a comédia e o drama, que, no fundo, não são conceitos excludentes entre si, mas, na verdade, complementares. O que os diferencia é o olhar que se lança sobre eles.
É notável o diálogo que Allen trava com o Shakespeare de Sonho de uma noite de verão, uma das peças mais famosas do bardo, que trata a respeito dos encontros e desencontros do coração, e de como os homens podem ser instáveis diante da vida e do amor. Tal diálogo havia sido travado antes, mais especificamente em Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996), filme no qual uma série de pessoas atirava a esmo na esperança de se realizar amorosamente. Allen também traz outra vez a arte como fonte de dirimição de inquietudes. Roy é mais um escritor na extensa galeria de personagens que abraçaram esse ofício, e também não está sozinho quando o assunto é frustração na profissão. Em títulos como Desconstruindo Harry (Desconstructing Harry, 1997) e Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999), também apareciam tipos que buscavam nos livros uma forma de se comunicar com o mundo. Ao longo de sua duração, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos reserva pequenas surpresas e alguns desdobramentos que se tornam esperados em determinada altura, mas que vão sendo costurados com traquejo por um artista que sempre está em forma, mesmo que não seja sempre uma unanimidade.
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10 de mai. de 2011
A eterna procura por afeto localizada em Estrela solitária
Os campos abertos dos EUA exercem um fascínio sobre Wim Wenders há muito tempo. Vez por outra, eles figuram em seus retratos pontuais sobre a sensação de desamparo que assinala a natureza humana. E assim o é em Estrela solitária (Don’t come knocking, 2005), um de seus trabalho mais recentes e, talvez, menos vistos. Aqui, o cowboy velho e cansado de guerra é materializado na figura de Howard Spence (Sam Shepard), um ator veterano que se destaca com seus personagens da mesma maneira que é talentoso para arranjar confusão na vida pessoal. Por conta de seu temperamento explosivo, Howard acaba abandonando o set de filmagem de seu novo trabalho, o que obriga o diretor da fita a contratar um “caçador de recompensas”, Sutter (Tim Roth), que tem de informar seu paradeiro o quanto antes, para que a produção continue a ser rodada. É então que começa o clima de road movie que vai demarcar toda a narrativa de Estrela solitária a partir daí.
Wenders elabora uma linda homenagem ao mais estadunidense dos gêneros cinematográficos através da figura de seu protagonista, e reedita a parceria com Shepard como roteirista 21 anos depois de Paris, Texas (idem, 1984). Os dois sempre são lembrados por esse filme, que se firmou como um ícone no imaginário cinéfilo, e aqui investem novamente na temática da viagem emocional, rendendo um filme sincero e apaixonado. É fácil esquecer que o realizador é alemão, pois sua forma de se apropriar da alma dos habitantes dos EUA é tão intensa que sua verdadeira nacionalidade passa despercebida. Sua câmera filtra a cor local das paisagens desérticas como poucos, demonstrando uma profunda intimidade com o objeto de análise, por assim dizer. O ponto de partida para a mudança na trajetória de vícios e loucuras de Howard é a descoberta da existência de um filho, do qual ele jamais soubera antes, e que o leva a uma jornada de reaproximação de pessoas que compuseram a estrada da sua vida. Essa é a deixa para que Wenders apresente na tela uma série de tipos que apresentam a carência de afeto como pólo aproximante, a começar pela misteriosa Sky (Sarah Polley), cujo nome é altamente sugestivo, por sua representação de uma nova guinada para o ator. Na verdade, ele descobre que tem um filho por meio de sua mãe (Eva Marie Saint), a qual não revela se se trata de um homem ou de uma mulher. Logo o espectador descobre que ele é Earl (Gabriel Mann), um sujeito de personalidade forte e extremamente rufião. Qualquer semelhança com Howard não é mera coincidência. Mas os laços familiares que os unem são a última coisa que vem à tona no relacionamento entre eles, que começa faiscante e beligerante. Através de Estrela solitária, Wenders penetra no terreno arenoso da relação paternal, um filão que constitui um manancial perene para o cinema. Assim como o uso da metalinguagem e as cinebiografias, a exploração dos matizes que afetam a convivência entre pai e filho surgem com frequência nos filmes. Para citar dois exemplos recentes e bem –sucedidos, temos Flores partidas (Broken flowers, 2005) e Um lugar qualquer (Somewhere, 2010), em que a questão da paternidade aflora a partir do contato mais próximo entre genitor e rebento. Entretanto, cada qual apresenta sua visão para o tema, o que os torna únicos e passíveis de serem acompanhados com perspectivas complementares. Um senão de Estrela solitária talvez seja seu título em português, completamente distante do original. “Don’t come knocking” pode ser traduzido livremente como “Não venha batendo”, uma alusão a um comportamento defensivo de quem não sabe qual pode ser a reação do outro à sua proximidade. Exatamente esse comportamento, um claro mecanismo de defesa nos termos de Freud, surge nas atitudes rudes de Howard com Earl e vice-versa. No fundo, ambos estão vazios de afeto, mas não são capazes de demonstrar essa necessidade, acabando por canalizá-la para a agressividade. E a escrita de Shepard, transformada em imagens pelas lentes de Wenders, dá conta de delinear o percurso acidentado da negação à manifestação do afeto que, cedo ou tarde, inundará o coração daqueles homens. É de chamar a atenção também a fotografia colorida do filme. Ela é uma responsabilidade de Franz Lustig, conterrâneo do diretor que colaborara com ele em seu filme anterior, Medo e obsessão (Land of plenty, 2004) e voltaria a colaborar com ele em seu filme seguinte, Palermo shooting (idem, 2008), que permanece inédito no Brasil.
Com este filme, o realizador repousa sua reflexão sobre a necessidade de se criar e manter vínculos com as pessoas que nos circundam, e aponta sobre a importância de não se dissociar totalmente das raízes as quais se tem. Sua câmera captura o vazio, e é pontilhada por um senso de humanidade muito acurado, que ecoa por toda a narrativa O contraponto das cores estouradas com as personalidades áridas dos personagens é uma mistura eficiente, que também seria adotada por Wong Kar-Wai em Um beijo roubado (My blueberry nights, 2007) apenas dois anos depois. Até mesmo um dos pôsteres do filme oferece essa composição imagética contrastiva, que assinala a intensidade dramática das trajetórias de Howard, Sky e Earl, que vão se cruzando a partir da procura intensa do protagonista por seu filho. Estrela solitária vai na contramão de todo maniqueísmo, centrando sua observação nos traços mais humanos que os personagens podem apresentar. O filme também marca a quarta ocasião em que Sam Shepard e Jessica Lange trabalham juntos, o que não acontecia desde Crimes do coração (Crimes of the heart, 1986). É notável a sintonia dos parceiro de cena, à vontade nos papéis de amantes dessa vez.
Como se pode perceber ao longo de sua duração, Estrela solitária é uma obra em que Wim Wenders se apropria belamente de uma das insígnias mais notáveis da cultura estadunidense – o gênero western – para discorrer sobre a eterna procura do homem por afeto. Por mais que tenha se embrutecido com o passar do tempo e a constante e sucessiva interpretação de personagens rústicos, Howard ainda preserva uma lacuna que só pode ser preenchida com carinho, tal qual o filho que encontra e as mulheres que cruzam seu caminho. A todo ato de agressividade praticado por ele, subjaz uma forte tendência à amabilidade e ao bem-querer, que ele insiste em sublimar por vicissitudes portentosas. Mas, a cada minuto de sua caminhada rumo ao reencontro, matizada pelo diretor no já citado aspecto policromático, essa rusticidade vai sofrendo o seu degelo.
Wenders elabora uma linda homenagem ao mais estadunidense dos gêneros cinematográficos através da figura de seu protagonista, e reedita a parceria com Shepard como roteirista 21 anos depois de Paris, Texas (idem, 1984). Os dois sempre são lembrados por esse filme, que se firmou como um ícone no imaginário cinéfilo, e aqui investem novamente na temática da viagem emocional, rendendo um filme sincero e apaixonado. É fácil esquecer que o realizador é alemão, pois sua forma de se apropriar da alma dos habitantes dos EUA é tão intensa que sua verdadeira nacionalidade passa despercebida. Sua câmera filtra a cor local das paisagens desérticas como poucos, demonstrando uma profunda intimidade com o objeto de análise, por assim dizer. O ponto de partida para a mudança na trajetória de vícios e loucuras de Howard é a descoberta da existência de um filho, do qual ele jamais soubera antes, e que o leva a uma jornada de reaproximação de pessoas que compuseram a estrada da sua vida. Essa é a deixa para que Wenders apresente na tela uma série de tipos que apresentam a carência de afeto como pólo aproximante, a começar pela misteriosa Sky (Sarah Polley), cujo nome é altamente sugestivo, por sua representação de uma nova guinada para o ator. Na verdade, ele descobre que tem um filho por meio de sua mãe (Eva Marie Saint), a qual não revela se se trata de um homem ou de uma mulher. Logo o espectador descobre que ele é Earl (Gabriel Mann), um sujeito de personalidade forte e extremamente rufião. Qualquer semelhança com Howard não é mera coincidência. Mas os laços familiares que os unem são a última coisa que vem à tona no relacionamento entre eles, que começa faiscante e beligerante. Através de Estrela solitária, Wenders penetra no terreno arenoso da relação paternal, um filão que constitui um manancial perene para o cinema. Assim como o uso da metalinguagem e as cinebiografias, a exploração dos matizes que afetam a convivência entre pai e filho surgem com frequência nos filmes. Para citar dois exemplos recentes e bem –sucedidos, temos Flores partidas (Broken flowers, 2005) e Um lugar qualquer (Somewhere, 2010), em que a questão da paternidade aflora a partir do contato mais próximo entre genitor e rebento. Entretanto, cada qual apresenta sua visão para o tema, o que os torna únicos e passíveis de serem acompanhados com perspectivas complementares. Um senão de Estrela solitária talvez seja seu título em português, completamente distante do original. “Don’t come knocking” pode ser traduzido livremente como “Não venha batendo”, uma alusão a um comportamento defensivo de quem não sabe qual pode ser a reação do outro à sua proximidade. Exatamente esse comportamento, um claro mecanismo de defesa nos termos de Freud, surge nas atitudes rudes de Howard com Earl e vice-versa. No fundo, ambos estão vazios de afeto, mas não são capazes de demonstrar essa necessidade, acabando por canalizá-la para a agressividade. E a escrita de Shepard, transformada em imagens pelas lentes de Wenders, dá conta de delinear o percurso acidentado da negação à manifestação do afeto que, cedo ou tarde, inundará o coração daqueles homens. É de chamar a atenção também a fotografia colorida do filme. Ela é uma responsabilidade de Franz Lustig, conterrâneo do diretor que colaborara com ele em seu filme anterior, Medo e obsessão (Land of plenty, 2004) e voltaria a colaborar com ele em seu filme seguinte, Palermo shooting (idem, 2008), que permanece inédito no Brasil.
Com este filme, o realizador repousa sua reflexão sobre a necessidade de se criar e manter vínculos com as pessoas que nos circundam, e aponta sobre a importância de não se dissociar totalmente das raízes as quais se tem. Sua câmera captura o vazio, e é pontilhada por um senso de humanidade muito acurado, que ecoa por toda a narrativa O contraponto das cores estouradas com as personalidades áridas dos personagens é uma mistura eficiente, que também seria adotada por Wong Kar-Wai em Um beijo roubado (My blueberry nights, 2007) apenas dois anos depois. Até mesmo um dos pôsteres do filme oferece essa composição imagética contrastiva, que assinala a intensidade dramática das trajetórias de Howard, Sky e Earl, que vão se cruzando a partir da procura intensa do protagonista por seu filho. Estrela solitária vai na contramão de todo maniqueísmo, centrando sua observação nos traços mais humanos que os personagens podem apresentar. O filme também marca a quarta ocasião em que Sam Shepard e Jessica Lange trabalham juntos, o que não acontecia desde Crimes do coração (Crimes of the heart, 1986). É notável a sintonia dos parceiro de cena, à vontade nos papéis de amantes dessa vez.
Como se pode perceber ao longo de sua duração, Estrela solitária é uma obra em que Wim Wenders se apropria belamente de uma das insígnias mais notáveis da cultura estadunidense – o gênero western – para discorrer sobre a eterna procura do homem por afeto. Por mais que tenha se embrutecido com o passar do tempo e a constante e sucessiva interpretação de personagens rústicos, Howard ainda preserva uma lacuna que só pode ser preenchida com carinho, tal qual o filho que encontra e as mulheres que cruzam seu caminho. A todo ato de agressividade praticado por ele, subjaz uma forte tendência à amabilidade e ao bem-querer, que ele insiste em sublimar por vicissitudes portentosas. Mas, a cada minuto de sua caminhada rumo ao reencontro, matizada pelo diretor no já citado aspecto policromático, essa rusticidade vai sofrendo o seu degelo.
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Amantes: o triunfo do coração sobre a razão
O melodrama é frequentemente dotado de uma forte carga pejorativa, o que se configura como uma grave injustiça de um público que serviu refém de tramas que supostamente falam do coração, mas não têm alma. Felizmente, Amantes (Two lovers, 2008) vem suprir essa lacuna. O filme de James Gray é uma ode ao amor como poucas vezes se testemunhou nocinema contemporâneo, tomado aqui como toda a produção cinematográfica das últimas duas décadas. No centro dessa história de amor, está Leonard (Joaquin Phoenix), um homemem estado de desespero. Ele começa o filme em uma tentativa de suicídio que, logo adiante, ver-se-á como não sendo a primeira. E essa sequência de abertura do filme já denota um aspecto que lhe é fundamental:a escala de cinza da sua fotografia.
Amantes se constrói basicamente por sua fotografia em tons acinzentados, que conferem uma atmosfera plúmbea à cidade de Nova York, onde se passa. Os ambientes frequentados por Leonard são sisudos, graves, condizentes com seu estado de espírito de franca desolação do personagem. Sua tentativa de suicídio, neste início, consiste em pular no mar, tendo nas mãos um dos símbolos de seu aprisionamento ao mundo dos vivos, por assim dizer: uma peça de roupa da lavanderia de seu pai, com quem ele trabalha. É de uma ironia cortante a frase que acompanha o logotipo da empresa: “Nós amamos nossos clientes”. Movido por um impulso de necessidade de colaboração com a família, talvez, Leonard emerge, sendo ajudado por um estranho que lhe permite recobrar a consciência. E saber que ele é tão necessário pela possibilidade de funcionar como um recurso humano também lhe é um fardo pesadíssimo.
O motivo que leva Leonard a adotar uma postura tão compassiva está no fato de ele ter rompido um noivado há dois anos, por causa de uma incompatibilidade genética. Ele ainda não superou o episódio, e é daí que derivam, também, suas constantes tentativas de suicídio. Seus pais, belamente interpretados por Moni Moshonov e Isabella Rossellini, são capazes de tudo por amor ao filho, e ficam atentos à possibilidade de envolvimento entre ele e Sandra (Vinessa Shaw), a filha de um casal de amigos deles. De fato, ocorre um encantamento entre os dois, e logo se percebe que Sandra fica mais interessada, e mais rapidamente, na pessoa de Leonard. Acontece que, dias depois de uma aproximação de Sandra, ele conhece Michelle (Gwyneth Paltrow), uma vizinha a quem ele dá guarida quando ela está em discussão com o pai mau-humorado. Uma vez tendo permitido a entrada de Michelle em sua casa, Leonard também permite que ela entre em sua vida. Está formado o contraponto entre estabilidade e aventura que permeia a narrativa de Amantes. Em diversos momentos, percebe-se que este é um filme feito à moda antiga, para falar aos corações despedaçados e aos sem esperança de autorrealização no amor.
Gray, como bem disse um crítico de cinema brasileiro, testa seu domínio de câmera, arrastando o espectador para uma ambiente essencialmente imagético, e descartando praticamente todas as referências temporais que os cenários poderiam apresentar, tornando o filme atemporal não somente por conta de sua temática. A condução leve e, ao mesmo tempo intensa do realizador, imprimem ao filme um aspecto permansivo, e de reflexão profunda. Amantes não se apresenta como inovador a maior parte do tempo, o que o aproxima ainda mais de uma história corriqueira. A vida é essencialmente trivial, e o longa-metragem capta esse detalhe em seus 110 minutos com muita propriedade. A seu favor, ainda, está a coesão do elenco. Tanto no ensaio de namoro com Michelle quanto na relação mais concreta que desenvolve com Sandra, há credibilidade, e o público pode se mostrar tão cindido com as possibilidades amorosas quanto o personagem.
Na verdade, Gray se vale também de uma estratégia dramática prototípica, e bastante eficiente: enquanto Sandra é o ar de tranquilidade que sopra suavemente sobre o rosto de Leonard, Michelle é a força intempestiva que o leva a querer alçar voos em direção a um abismo desconhecido. Muitos outros filmes já se valeram dessa premissa, mas poucos foram capazes de oferecer tanto realismo e empatia em cena. A trilha sonora é outro dos elementos que explicam a força de Amantes. Muitas árias de óperas, com seu peso dramático, acentuam a importância do drama que o protagonista está vivendo. Leonard se permite vivenciar a dor e o vazio, mas também caminha na direção de sua superação, a cada novo encontro com Sandra ou com Michelle. A propósito, a personagem foi especialmente escrita para Gwyneth Paltrow, que vem se tornando cada vez mais seletiva com suas escolhas como atriz. É de encantar sua maturidade adquirida ao longo dos anos e dos filmes, e a vitalidade, até certo limite, que ela entrega na pele de uma mulher que é uma espécie de advento da paixão, mas que também oferece fartas doses de complicação, por conta de seu envolvimento com outro parceiro e de sua inclinação às drogas.
Raciocinando com a cabeça, Leonard não teria porque hesitar, já que Sandra representa toda a segurança que lhe é necessária. Em dado momento do filme, ela lhe diz com todas as letras que quer cuidar dele, mas não parece tão simples para Leonard simplesmente escolher estar ao seu lado. E essa hesitação deriva exatamente da abertura para o mundo que Michelle lhe oferece. Ele se identifica com aquela mulher que se sente tão insegura diante de sua condição de amante, e que se refugia nas drogas em muitos momentos para ter certeza de que há um lugar melhor que a realidade para viver. Os encontros de Leonard e Michelle, quase sempre furtivos, e as conversas que eles têm ao telefone, mesmo estando apenas de frente um para o outro das janelas de seu apartamento, assinalam o ensaio rumo à liberdade feito pelo protagonista. Aliás, também cabe ressaltar a atuação contida, na medida certa, de Joaquin Phoenix. Ele sela com Amantes sua terceira parceria com James Gray, com quem já havia filmado Caminho sem volta (The yards, 2000) e Os donos da noite (We own the night, 2007). Este último foi apontado como um sopro de renovação na seara dos dramas policiais, e ajudou a consolidar a carreira de Gray como realizador, permitindo-lhe também a incursão pelo drama mais propriamente dito.
O resultado final de Amantes é simplesmente encantador, com uma ambientação que lhe permite a classificação como excelente. A narrativa segue com uma fluidez impressionante, graças ao roteiro bem azeitado a cargo do próprio cineasta. Seu filme traça um painel plausível da angústia de querer, e do quanto o ser humano é complexo, especialmente no que se refere ao campo amoroso. Apesar de investir pesado no drama, o filme não carrega consigo uma aura pessimista, mas reforça o tempo todo a faliblidade das relações, que podem sucumbir ao menor solavanco. Para além de qualquer referência espaço-temporal, o filme se constrói com delicadezas, gestos que trazem as verdadeiras perspectivas de seus autores e a constatação de que o amor reverbera na vida de uma pessoa, e não há como fugir da necessidade de sua concretização.
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