O grande tema abordado em O talentoso Ripley é a ambição desmedida. É desse sentimento vil e mesquinho que derivam todos os outros, também da pior espécie, na vida do protagonista do longa. Tom Ripley (Matt Damon) é um rapaz franzino, que não chama muito a atenção de quem está ao seu redor, o que o torna mais um na multidão. Sua aparência frágil e amistosa, contudo, camuflam um jovem desejoso de ascender socialmente, mesmo que seja levado, para isso, a recorrer aos mais reprováveis estratagemas. Ele encontra a grande chance de sua vida ao ter seu caminho cruzado com o de um importante milionário, que pede a sua ajuda para uma questão pessoal.
Ripley é solicitado por esse homem para viajar até a costa italiana, com o intuito de convencer o filho do milionário a retornar para casa. Esse filho se chama Dickie Greenleaf (Jude Law), e é um grande farrista que gasta seu tempo e seu dinheiro naquilo que mais aprecia: as noites na esbórnia. Certo de que que essa pode ser a sua chance de entrar para alta sociedade pela porta da frente, Tom aceita o pedido, e embarca para o local onde está Dickie. Não demora para que ele consiga travar amizade com o bom vivant, tornando-se bastante próximo de seu convívio diário. Também é logo que Tom fica fascinado pela riqueza daquele homem, e não só pelo que Dickie tem, mas também pelo que ele é.
Ocorre que Tom desenvolve um sentimento um tanto tortuoso por Dickie, que fica sempre entre o implícito e o explícito, a depender da circunstância. A cada olhar de Tom para Dickie, isso fica mais notório. Mas Dickie demonstra não compartilhar da mesma admiração intensa que Tom nutre por ele, o que acabará enervando o rapaz.
Além disso, Dickie está noivo de Marge (Gwyneth Paltrow), uma mulher meiga, mas que nem por isso deixa de ser perceptiva. É ela quem começa a desconfiar de que Tom não seja exatamente uma boa companhia para Dick e, com isso, torna-se um grande desafeto do rapaz. Uma das justificativas para o fato de Marge ter essa opinião é a sua observação de que Tom parece querer mais do que simplesmente uma amizade com Dickie. Transformando-se em uma espécie de obstáculo para ele, Marge vai acabar vendo acontecer aquilo que mais teme.
O título do filme é explicável por uma característica notável de Tom: ele tem incrível habilidade para imitar vozes e assinaturas de pessoas, sem que, à primeira vista, perceba-se que se trata de uma imitação. Nas vezes em que está com raiva de Marge, ele consegue reproduzir sua voz com perfeição, extravasando o sentimento. Inicialmente, a trama dirigida por Anthony Minghella (O paciente inglês) se constitui um eficiente drama psicológico, o que vai mudando com o avançar da narrativa. Lá pela frente, quando o filme ultrapassa a sua primeira hora de duração, o rumo é outro, fazendo que a história ganhe contornos de uma trama policial. Isso ocorre quando Tom percebe que não será simples para ele prosseguir em sua ascensão social se tiver Dickie por perto. É melhor não revelar o que acontece daqui para a frente, pois estragaria o ápice da trama de Minghella. O diretor foi feliz em conduzir sua trama com o suspense que o enredo exige, e escalou um elenco muito interessante para o seu filme. A começar pelo ator principal, que dá nome ao longa: Matt Damon. Ele encarna com propriedade o papel de um rapaz um tanto aparvalhado, que consegue alcançar boa parte dos seus objetivos com uma dose de dissimulação. Damon vinha do sucesso recente de Gênio indomável (Good Will Hunting, 1997), ocorrido apenas dois anos antes. Aqui, ele exibe um físico dândi, completado pelos óculos de aros grossos que lhe conferem a aparência de um loser, conceito tipicamente estadunidense.
Seu companheiro de cena, Jude Law, também entrega um desempenho incrível na pele de Dickie, e é o extremo oposto de Tom. Ele constrói um homem alegre, charmoso e solar, dotado de uma personalidade ambígua, que confunde e encanta Tom de várias maneiras. Pelo seu papel, Law recebeu uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjvante em 2000, quando concorreu com nomes como Tom Cruise (por Magnólia) e Michael Caine (por Regras da vida), para quem perdeu a estatueta dourada. Em várias cenas, o personagem parece demonstras estar cônscio da forte atração que exerce sobre Tom Ripley, aproveitando para brincar bastante com isso. Em uma sequência na qual eles estão jogando xadrez, e Dickie está numa banheira, Tom lhe diz que gostaria de entrar ali também, mas não necessariamente com ele dentro. Segue-se a esse comentário um sorriso provocador e malicioso de Dickie para Tom, e o ricaço se levanta da banheira completamente nu, atraindo o olhar de Tom. Nessa cena fica evidente o tipo de sentimento que Tom dedica ao amigo.
O talentoso Ripley (The talented Mr. Ripley, no original) é o resultado da primeira parceria entre Law e Minghella, que renderia dois outros filmes na carreira de ambos: Cold mountain (2003), pelo qual Law também foi indicado ao Oscar, dessa vez como melhor ator, o que comprova que junção de um com o outro é proveitosa, e Invasão de domicílio (Breaking and entering, 2006), em que contracena com Juliette Binoche, formando um dupla maravilhosamente entrosada. O filme acabou sendo pouco visto, e bastante subestimado, mas merece alguma atenção por seu roteiro bem escrito, o primeiro a cargo do próprio diretor.
Outra que cumpre com louvor a missão de dar conta do papel que lhe foi confiado é Gwyneth Paltrow. A atriz geralmente é encarada com preconceito por boa parte dos críticos, mas é uma profissional gabaritada no que faz, e sabe utilizar muito bem sua aparência cândida em favor da caracterização de sua Marge. Ela é a pedra no sapato de Tom, que tenta ganhá-la com sua conversa, mas não o consegue. Perto da meia hora final da história, sua personagem ganha mais força, erguendo-se como uma inimiga feroz de Ripley, a quem oferece grande resistência.
No geral, O talentoso Ripley se mostra como um filme empolgante sobre os (des)caminhos da ambição trilhados por um protagonista que vai abandonando seus escrúpulos paulatinamente em prol de um reconhecimento perante a sociedade e uma sensação de pertencimento a ela. Inicialmente designado para trazer Dickie de volta para casa, ele acaba abrindo mão de convencer o novo amigo, que mantém uma relação tumultuada com o pai desde há muito tempo. Mas o que começou de forma errada termina de forma errada, como se verifica mais adiante. O filme é a segunda adaptação do romance de Patricia Highsmith para o cinema, tendo a sido a primeira O sol por testemunha (Plein soleil, 1960), uma coprodução franco-italiana dirigida por René Clément. A diferença está no nome do bom vivant, que aqui se chama Phillipe. O protagonista que troca de identidade, por sua vez, é interpretado pelo lendário Alain Delon. A autora tem uma obra conhecida principalmente pelo engendramento de tramas policialescas, com certas pitadas de humor negro e, por vezes, macabras, como é o caso de suas histórias curtas. Alfred Hitchcock também já adaptou uma obra sua, Strangers on a train, que, no Brasil, ganhou o título de Pacto sinistro (1951), e que se tornoum uma de suas produções mais famosas.
Voltando ao filme, é um prazer acompanhar os desdobramentos de uma história construída com base em aspectos verossímeis da natureza humana, expostos de maneira clara e, por vezes, isenta de edulcorantes. Ripley é a própria representação do caráter multifacetado do homem, e isso é, ao mesmo tempo, fascinante e repudiável. Ao ter sua trajetórias delineada pelas lentes de Minghella, esse misto de sensações acaba atravessando o espectador, que pode se ver inconscientemente ou não torcendo para o personagem. Com o fim das mais de duas horas de projeção, uma das conclusões a que se pode chegar é a de que, independentemente da situação em que se encontra, o ser humano não perde jamais o desejo de lograr vantagem com o que está à sua volta, sempre no intuito de, adejando mordazmente, alçar voos mais altos.
18 de nov. de 2010
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