7 de nov. de 2010

Flagrantes de uma intimidade a dois com doses de hiperrealismo em “9 canções”

Poucas vezes o cinema se mostrou tão minucioso no retrato de uma relação a dois como ocorreu em 9 canções. No filme de Michael Winterbottom, a crueza com que um casal extravasa seu desejo sexual é o ponto mais notável de uma obra que, na verdade, constitui-se basicamente apenas desse conteúdo. No centro da narrativa,está um casal que se conheceu em um show, e que, a partir de então, vive uma história de amor tão intensa quanto evanescente. A minúcia que foi comentada acima se deve ao fato de Winterbottom expor a intimidade desse casal, com riqueza de detalhes, no que tange ao sexo.

A cada novo fotograma, o espectador vê Matt (Kieran O’Brien) e Lisa (Margot Stilley) prontos para se entregar ao prazer sexual sem qualquer reserva. No início do filme, que dura somente 70 minutos, somos brevemente apresentados ao protagonista, que assume a posição de narrador da história, revelando que os fatos contidos naquela narrativa se encontram no passado. Matt é um geólogo que começa a história sobrevoando a superfície da Antártida, para a realização de pesquisas com o solo da região. Em um breve momento de elocubração, ele é tomado pelas lembranças relativas a Lisa, sua ex-namorada. Começa, então, a falar para o público sobre aquilo que mais o marcou nesse relacionamento.
A partir desse momento, o diretor encaminha seu enredo simples para uma estrutura de alternância: entre uma e outra sequência de rememoração do romance que houve entre Matt e Lisa, é inserida uma cena de um show de uma banda importante do cenário musical londrino, principalmente. A ocasião em que eles se conheceram, a propósito, foi um concerto de rock, o que, de alguma maneira, explica as memórias de Matt sendo sempre entrecortadas por imagens de apresentações de grupos musicais. O cineasta acaba por construir um filme híbrido de cinema com videoclipe, por conta da mais notável característica dessa forma de comunicação: a estrutura fragmentária. Nada nos é apresentado em sua integridade, mas de forma despedaçada, como se a sua junção formasse, ao final, um quebra-cabeças que responde pela “verdade” das lembranças de Matt.
Pouco a pouco, somos transportados para as noites intensas que o casal viveu, sempre marcadas por muito sexo. O casal tem sua intimidade totalmente devassada pela câmera de Winterbottom, que faz corar os mais tímidos diante de tanto realismo nas cenas apresentadas. A maior parta das sequências não fica muito longe daquilo que se pode observar em filmes declaradamente pornográficos. O cineasta acaba “dialogando” com as produções desse gênero, deixando de lado a possibilidade de incluir 9 canções no rol dos filmes românticos. Não que não haja romantismo em 9 canções. Mas, aqui, o romantismo é diluído pelas fartas doses de luxúria que toma conta dos amantes. E as tais 9 canções do título são entoadas por nomes bastante heterogêneos, para agradar a gostos variados. Estão lá, em algum momento da narrativa: Bob Hardy, Alex Kapranos, Nick McCarthy, Michael Nyman, Huw Bunford, entre outros. A trilha sonora do longa é composta pelas músicas que esses artistas apresentam, e que funcionam como elemento de concatenação entre as várias fases que o relacionamento de Matt e Lisa percorreu. A certa altura do filme, descobrimos que o namoro entre eles terminou, tendo durado um ano apenas. Não ficam muito explícitas as razões que levaram ao fim da relação, mas é evidente que Matt ainda não foi capaz de esquecê-la.

Voltando à questão da crueza com que o sexo do casal é mostrado, Winterbottom não poupa detalhes, dando closes generosos nos corpos de seus personagens. Os intérpretes foram obrigados a deixar todo o pudor de lado, e se entregar a cenas que revelam detalhes íntimos de suas anatomias. Há, inclusive, cenas de nu frontal, tanto de Stilley quanto de O’Brien, que demonstram a profunda sintonia que lhes foi necessária para dar conta de expressar todo o furor sexual que dominava o namoro de seus personagens. No que diz respeito a essa maneira objetiva de capturar a nudez de atores, 9 canções possui um aparentamento com outros filmes. Principalmente com Na cama (2006), longa chileno dirigido por Matías Bize, e que também era caracterizado pela concentração da ação em dois personagens, mas cuja relação se construía e se destruía em uma única noite, e se mantinha circunscrita a um único espaço físico: um quarto de motel.
Mas o filme de Winterbottom se diferencia daquele por não investir tanto em diálogos. Em Na cama, a palavra reina absoluta, sendo o motor para que o casal possa exteriorizar seus sentimentos e anseios com mais adequação, o que não acontece em 9 canções. As vozes mais ouvidas são a dos cantores das bandas que se apresentam nos shows relembrados por Matt, aos quais ele foi acompanhado de Lisa. Outro filme, posterior como Na cama, que se assemelha a 9 canções no tocante à exposição de corpos desnudos, é Shortbus (2007), de John Cameron Mitchell, que apresenta uma série de homens e mulheres movidos pelo sexo, de uma maneira ou de outra. No cotejo entre 9 canções e Shortbus, o segundo sai vitorioso nesse aspecto. Mitchell investe muito mais na composição dramática de seus personagens, trazendo à tona vários conflitos internos que não são verbalizados a contento, e que, por isso, parecem ser mitigados pelo sexo, descompromissado ou não. Em 9 canções não há muito espaço para a fruição das angústias que perpassam as vidas de Lisa e Matt. Tudo o que sabemos sobre eles é o que Matt vai revelando, o que não é muita coisa.
Ainda assim, 9 canções é um filme que vale ser visto e debatido, pois a ideia de Winterbottom foi bastante corajosa. Desnudar, literalmente, os corpos de seus protagonistas como forma de lhes apresentar por inteiro, é uma premissa muito interessante. Seu porém, como já se comentou, é não se aprofundar nas razões que levaram ao fim do romance de seus personagens, o que poderia garantir alguns minutos a mais na duração do filme. Para quem não conhece, Michael Winterbottom dirigiu vários outros longas antes desse, entre os quais estão Desejo você (1995), Neste mundo (2002) e Código 46 (2004). Em comum, todos têm o elenco formado por rostos desconhecidos. Rachel Weisz é o único nome badalado entre eles, mas, ainda assim, à época de lançamento do filme, ainda era uma ilustre desconhecida. Seu cinema é marcado pelo experimentalismo, tal qual se verifica em 9 canções. Resumindo, o filme é para quem deseja mergulhar pelos interstícios de uma relação a dois sem o exercício de reflexão tradicional, o que não significar estar diante de um desfile de baboseiras prototípico de certos filmes sobre relacionamentos.

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