Nestes últimos anos, o cinema romeno vem desfrutando de um prestígio notável, assinalado pela chegada de, pelo menos, um filme por ano ao circuito comercial. A “onda” de interesse pela cinematografia daquele país começou em 2007, com o lançamento de A leste de Bucareste (A fost sau n-a fost?, 2006), prosseguiu em 2008, com a exibição de 4 meses, 3 semanas e 2 dias (4 luni, 3 saptamani si 2 zile, 2007) e de Como eu festejei o fim do mundo (Cum mi-am petrecut sfarsitul lumii, 2006), chegou a 2009, com Casamento silencioso (Nunta muta, 2009) e, até o momento, conclui-se com Polícia, adjetivo (Politist, adjectiv, 2009).
Possivelmente, essa safra de filmes romenos ainda oferecerá outros exemplares, mas esses são os que tiveram uma chance nas salas de exibição, por enquanto. Especificamente, essa crítica é sobre Polícia, adjetivo, a mais recente produção de Corneliu Porumboiu, que também é o diretor de A leste de Bucareste. Em seu filme mais recente, o propósito claro da trama é desvendar qual seja a grande função de um homem da lei, que é encarnado pelo competente Dragos Bucur, cujo personagem atende pelo nome de Cristi. Como policial que é, ele tem de lidar cotidianamente com casos que desafiam a noção de justiça, e que o levam a ponderar qual a verdadeira fronteira entre um ato criminoso e um simples desvio de menor relevância.
No começo do filme, o espectador é apresentado à rotina pacata de Cristi, que vive uma vida sem grandes emoções, apenas saindo de casa para trabalhar e voltando do trabalho para casa. Seu dia sem grandes emoções, diferentemente do que um espectador mais imediatista pode supor, não vai sofrer nenhuma grande reviravolta. Fica logo patente aos olhos de quem assiste ao filme que Porumboiu abdica de qualquer traço de ação para a sua abordagem de um tema que exige concentração do público. O protagonista terá apenas uma função na qual se ocupar, que lhe é designada por seu superior: ele deve ficar à espreita de um jovem que é suspeito de traficar haxixe para seus amigos de escola. Uma vez tendo recebido essa missão, Cristi terá de ser somente olhos e ouvidos para o rapaz.
Não demora para que ele descubra que o garoto, na verdade, é apenas usuário da droga, o que o leva a acreditar que não haja necessidade de denunciá-lo. Em sua concepção, ser usuário não é algo grave, e ele acredita que, com a entrada da Romênia na União Europeia, as leis do país serão modificadas, para estar em consonância com a dos outros países-membros. Com isso, não quer fazer o que seu trabalho preconiza, que é prender o rapaz. É essa a grande discussão do filme, e que vai permear, de uma maneira ou de outra, todas as sequências que serão apresentadas dali em diante.
A câmera de Porumboiu, com seus longos planos estáticos, é um grande exercício de contemplação proposto ao espectador, que, aqui, tem a sua condição de quem apenas assiste potencializada ao máximo. O filme também é bastante econômico no que concerne aos diálogos, a começar pelo seu protagonista, que poucas vezes abre a boca para exteriorizar suas opiniões e valores às outras pessoas. Por isso, o filme não deixa de ser também uma obra intimista, que não está preocupada em transmitir ao público uma verdade absoluta sobre determinado assunto. O roteiro de Polícia, adjetivo é simples e eficiente em sua abordagem algo despojada do tema. Acima de tudo, é um filme sobre o juízo de valor particular das pessoas sobre as palavras, que expressam conceitos e veiculam perspectivas.
A grande sacada do diretor é levar para a tela de cinema uma discussão que qualquer um de nós pode se permitir fazer, e que permeou a obra de outros diretores : as palavras verdadeiramente correspondem às coisas? Será que tudo o que dizemos é a verbalização real do que pensamos e sentimos? Mais do que isso, o longa trata da possibilidade de uma mesma palavra significar uma coisa para uma pessoa, e ter um significado diferente para outra, o que comprova as incongruências que permeiam as relações humanas desde há muito, quiçá desde que o homem começou a fazer uso da palavra. Porumboiu segue um caminho distinto de outros realizadores, que se baseiam mormente na palavra, e trilha um caminho de observância. Somos guiados na narrativa pelo olhar de Cristi, que, certas vezes, mostra-se entediado com a vigilância que precisa exercer sobre o jovem de quem a Polícia suspeita, bem como sobre aqueles que rodeiam o rapaz. Essa escolha do diretor exige que o espectador se concentre o tempo todo naquilo que os olhos do protagonista filtram, um aspecto que aproxima o filme de um contemporâneo brasileiro, o belo Viajo porque preciso, volto porque te amo, com a diferença de que o personagem principal do filme de Marcelo Gomes e Karim Ainoüz fala sem parar, como forma de expurgar a solidão em que se encontra. Polícia, adjetivo, é um filme de questionamentos, em que a questão moral é trabalhada com minúcia, o que inclui uma consulta ao dicionário para verificar qual é o seu significado. Quando demonstra ao seu superior que não vai levar o caso do rapaz à frente, pelo fato de não achar necessário punir um usuário, Cristi aciona instâncias de reflexão sobre o papel de um policial, e instaura uma procura pelo que realmente uma palavra como "moral" ou "policial" quer dizer.
A conjugação desses fatores serviu de motivação para que o filme fosse premiado em Cannes, onde recebeu o prêmio do júri dentro da mostra Un certain regard (Um certo olhar), que privilegia longas-metragens de ficção que tenham uma visão contributiva sobre um determinado assunto, e que comumente são de fora do território francês.
O título do filme pode causar estranhamento em quem o descobre na prateleira de uma locadora ou entres os filmes disponíveis para download de um site qualquer, pois dá a uma palavra tradicionalmente classificada como substantivo a classificação de adjetivo. Conforme as gramáticas normativas apregoam, o adjetivo serve para modificar um substantivo, vindo, normalmente, posposto a ele. Aqui, o diretor romeno parece levar essa definição para um outro ângulo, mostrando que uma mesma palavra pode ser classificada de maneiras diferentes, a depender do contexto em que estiver inserida. Além disso, o filme não tem uma trama policialesca prototípica, em que tiros e perseguições contribuem para o desenvolvimento de uma ação desenfreada. Pelo contrário. Quase nada acontece durante toda a projeção. Por isso é importante assistir ao filme sem a pressa de que ele termine, pois o mais importante em Polícia, adjetivo não é a conclusão de uma teoria, apenas a abertura de uma discussão que pode ser aprofundada em diversas medidas.
De forma resumida, o filme é um tratado simples e conciso sobre os dilemas morais e éticos de um "homem da lei" diante das circunstâncias de seu próprio trabalho, e as ressonâncias que a sua atitude (ou a falta dela) podem gerar naquele que é o alvo de sua investigação. A narrativa do filme se encaminha para um final inconcluso, e deixa no ar todas as questões que levanta. Essencialmente um painel de contemplação, o filme funciona como alavanca para o debate de um assunto que sobrevive de nossas memórias para além de seus 115 minutos de duraão. E a encenação límpida dos conflitos internos de uma pessoa comum responde pelo tônus dramático do longa : são o trunfo mais inquietante que Porumboiu poderia apresentar.
29 de nov. de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário