Juntamente com o alvorecer da década de 60, Michelangelo Antonioni decidiu presentear os espectadores com uma série de filmes de qualidade inenarrável, cujo agrupamento é denominado sugestivamente Trilogia da Incomunicabilidade. Tal nomenclatura, por si só, já é eficiente indicadora de que as obras que a compõem são de teor incômodo, do qual muitos procuram manter distância. Ela é composta por A aventura (L’avventura, 1960), A noite (La notte, 1961) e O eclipse (L’eclisse, 1962), e cada um desses filmes apresenta em si a qualidade indefectível de se debruçar sobre os vazios incomensuráveis que permeiam as relações humanas.
No caso específico de A noite, objeto de análise dessa crítica, o que se verifica, assim como no primeiro filme da série, é a ciência de que o silêncio pode ser extremamente perturbador, mas que a palavra também pode ferir, tal qual um instrumento pontiagudo arremessado em direção a um desafeto. Com a trilogia, de uma maneira geral, Antonioni espiona o descontentamento da alta sociedade italiana de sua época, gente frívola e desprovida de apego ao que verdadeiramente tem importância e não pode ser adquirido via intercâmbio pecuniário. Os protagonistas de A noite são Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni) e Lidia (Jeanne Moreau), um casal que já vive junto há um certo tempo. Eles são ricos, interessantes e charmosos, mas parece que isso não lhes dá a completude de que têm necessidade.
A união de ambos já dura 10 anos, e a sensação de ausência de algo que eles não sabem exatamente o que é permeia seus diálogos e suas ações. Logo no início do filme, o público é apresentado a uma inebriante fotografia em preto e branco, fruto do trabalho exímio de Gianni di Venanzo, que o introduz em uma atmosfera soturna, mostrando que a história que virá em seguida não caminhará do modo mais simplório. Os silêncios são uma constante ao longo de toda a narrativa, e podem ser incômodos àqueles mais afeitos aos diálogos mesclados com muita ação. Quase não há ação no filme, e mesmo os diálogos contrariam aquele princípio básico do início do cinema, de que devem servir para impulsionar a narrativa. Por mais paradoxal que isso possa parecer, A noite é um filme em que a palavra e o silêncio têm o mesmo peso e brilham com a mesma intensidade. Giovanni e Lidia, tendo já vivido 10 anos juntos, têm muito o que questionar, e o fazem com certa debilidade.
Na verdade, o longa também é um eficiente estudo sobre como os seres humanos preferem o escapismo ao confronto com a verdade. O casal protagonista é um exemplo concreto disso, pois opta por empurrar a crise em que vivem para debaixo do tapete. Apesar de atravessados por uma profunda frustração, eles escolhem emitir sorrisos artificiais para o círculo social em que se encontram, mascarando seus interiores para que ninguém os veja como são de fato. No fundo, são como sepulcros caiados, que demonstram uma bela aparência, mas que guardam uma enorme e terrível lacuna consigo. Uma possível válvula de escape que surge em suas vidas é o convite para uma festa em uma mansão milanesa, onde estarão presentes vários amigos de longa data dos dois. É ali que eles exercerão com mais intensidade o mimetismo de suas angústias, tentativa que não é bem sucedida, pois, a todo momento se vêem acuados pelas verdades encobertas.
Em A noite, Antonioni prossegue com a sua proposta de filmes anteriores, que aparece inclusive em um de seus primeiros longas, Crimes da alma (Cronaca di un amore, 1950), e também em O grito (Il grido, 1957), em que aparecem personagens masculinos em busca de respostas para os questionamentos de suas almas cansadas. Aqui, o papel de homem desesperançado cabe a Mastroianni, que o defende com especial apreço. Giovanni é um belo homem, mas nada do que tem é suficiente para lhe dar a alegria que tanto deseja e não encontra. Ele sente, tanto quanto Lidia, que seu casamento já não é o mesmo do início, mas não sabe exatamente o que fazer para contornar a situação. Ao longo de toda a duração do filme, o espectador verá que essa é apenas uma das várias perguntas que vão sendo levantadas, sem que haja uma preocupação com as suas respectivas respostas. Antonioni não é um diretor de muitas concessões, e A noite é o tipo de filme que pode ser melhor absorvido se visto pela segunda vez, pois muito de sua intensidade pode passar despercebida aos olhos de espectadores menos habituados à linguagem (ou à falta dela) empregada pelo diretor italiano. Propositalmente, existe uma série de vácuos na narrativa, como espaços em branco a serem preenchidos pelo próprio espectador. Como em A aventura, a trama principal não é necessariamente o fio condutor da narrativa. No primeiro filme da trilogia, o mistério do desaparecimento de uma mulher é abandonado sem que seja solucionado. Aqui, a crise no casamento de Lidia e Giovanni também não obtém todas as respostas de que eles necessitam.
Um dos fatores que serve como catalisador para a desestruturação da “história de amor” dos protagonistas é a visita que eles fazem, logo no início da história, a um velho amigo de Giovanni, que está hospitalizado. A situação daquele homem inspira muitos cuidados, o que os leva a se verem diante de um cenário desalentador. Ao saírem dali, o casal é tomado por uma sensação de urgência de viver, e se questiona sobre como podem aproveitar mais de suas vidas, sendo que estão casados um com o outro. A pergunta inevitável – como estaria a minha vida se eu não tivesse me casado com ele(a)? – surge com toda a intensidade na mente de cada um. Outro fator desestabilizador da já frágil harmonia entre Lidia e Giovanni é o encontro deles com uma exuberante mulher na festa a que vão, vivida com talento por Monica Vitti, esposa de Antonioni na vida real. Com suas verdades perturbadoras, ela encanta e desestrutura Giovanni com a mesma facilidade.
A trama de A noite também é restrita no que concerne ao arco de tempo em que está compreendida. Os acontecimentos que modificam as vidas dos protagonistas sucedem entre uma tarde de sábado e a madrugada de um domingo, o que faz seu título possuir alguma coerência. Com isso, fica evidente que Antonioni se utiliza do tempo psicológico, que impede a narrativa de avançar temporalmente, mas que confere grande riqueza de detalhes, se se considerar o prisma da multiplicidade de acontecimentos. Como em um conto machadiano, do qual Missa do Galo pode ser um exemplo prototípico, o filme do realizador italiano perscruta através de pequenas gretas as incongruências de uma vida em comum em apenas poucas horas, como se fossem uma eternidade. Nesse sentido, há uma certa aproximação entre a obra literária e a obra cinematográfica apresentadas. Cada instante de A noite parece contribuir para assinalar a sensação de angústia pela impotência diante de um sentimento que se esvai sem que, conscientemente, algo possa ser feito para impedir.
O longa é contemporâneo de uma série de filmes proposta por Ingmar Bergman, que recebeu o título de Trilogia do Silêncio: Através de um espelho (Såsom i en spegel, 1961), Luz de inverno (Nattvardsgästerna, 1962) e O silêncio (Tystnaden, 1963). É bastante interessante perceber que, em países e culturas distintas, ainda que sob o signo do continente europeu, dois diretores tenham pensado em conceber obras tão similares no que diz respeito à captura dos vazios verbais da convivência entre seres humanos. Ambos os cineastas se propuseram a exumar as chagas da vontade que vão se tornando aterradoras para os homens, que tentam encontrar maneiras de expurgá-las ou sublimá-las sem que isso lhes deixe sequelas na alma. Essa convergência para o viés da observação contumaz é o que caracteriza a obra de ambos como a investigação do que há de mais suplantador da felicidade: a negação ou o incoformismo consigo mesmo.
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