Ao longo de sua extensa filmografia, Woody Allen se permitiu fazer incursões muito bem-sucedidas pelo terreno da comédia, tornando o seu nome um dos mais inesquecíveis no gênero. Não é exagero, portanto, dizer que Allen está para a comédia assim como Hitchcock está para o suspense. Cada qual demonstra (demonstrou) ser exímio naquilo que faz (ou fez), o que torna a espera por seu próximo trabalho um delicioso suplício. Entretanto, Allen não se restringiu aos filmes que provocavam risos, e também se aventurou no drama, sendo responsável por alguns dos filmes mais subestimados do nosso tempo. Em fins dos anos 70, trouxe Interiores (1978), longa dotado de uma atmosfera bergmaniana flagrante. Ele nunca escondeu de ninguém que Bergman é seu diretor predileto, e voltou a demonstrar essa predileção dez anos depois com A outra.
Aqui, filmou a história de uma mulher em busca de um encontro consigo mesmam, vivida pela talentosa Gena Rowlands. Foi o bastante para que, como com Interiores, o cineasta fosse rechaçado, tendo seu filme definido como uma tentativa coxa de se aproximar do realizador sueco. Trata-se de uma tremenda injustiça, que merece ser corrigida. E a melhor forma de se fazê-lo é assistindo ao filme, o que não é sacrifício algum. A trama gira em torno de Marion Post (Rowlands), uma escritora que está em processo de construção de seu novo livro. Sua rotina começa a sofrer alterações quando ela precisa se mudar temporariamente para um apartamento onde poss escrever com mais tranquilidade. Com isso, isola-se em um lugar que tem um problema acústico, o que lhe permite ouvir as lamentações de uma paciente que se consulta com a psiquiatra que trabalha no apartamento ao lado.
É com esse argumento simples e atiçador que Allen desenvolve, durante enxutos 84 minutos, uma história de autodescoberta a partir da observação do outro em suas minúcias e contradições. Um teor fílmico bastante parecido com a obra de Bergman, que, a cada novo trabalho, procurava mais e mais dissecar os interstícios da natureza humana, o que resultava em belos ensaios sobre a condição dos homens. Allen também demonstra essa busca em A outra (Another woman, no original) talvez, no máximo, com uma perspectiva mais modesta. De fato, não está entre os grandes filmes do diretor. Mas um filme não tão bom de Woody Allen nos deixa, no mínimo, com a sensação de que estamos diante de um velho conhecido, ouvindo falar em um de seus dias de menos inspiração.
Voltando ao enredo do filme, a história de vida da mulher estranha que Marion ouve desperta-lhe o interesse, e ela quer conhecer melhor aquela pessoa que está em uma fase tão conturbada. Aquela mulher estranha se chama Hope, um nome bastante sugestivo, certamente não tendo sido escolhido ao acaso pelo diretor e roteirista, já que, em português, sua tradução é "esperança". É exatamente o sentimento que falta à personagem, que parece estar se afastando progressivamente da sanidade a cada novo passo que ensaia dar. Não demora para que Marion tente se aproximar um pouco mais de Hope, que se revela arredia, quase o extremo oposto dela.
Allen faz com que dois polos contrastantes entrem em contato, dando ao espectador a noção de que, o que nos atrai no outro pode ser muito daquilo que temos dentro de nós mesmos. Quando a arrogância ou a irreverência de alguém nos incomoda, pode ser porque estamos olhando como que por um espelho a outra pessoa. Quando reclamamos que fulano nos tira do sério, podemos estar nos referindo ao reflexo de nossa própria imagem sendo visto nessa pessoa.
Por esse motivo, dentre vários, A outra é um filme bastante atraente, pois coloca o público em contato com um lado incômodo de sua personalidade. Marion, envolvida pela forma libertária com que vê Hope levar a vida, livre de amarras que impõem o convívio social, inicia um romance canhestro com Larry (Gene Hackman), mesmo tendo um casamento de longa data com Ken (Ian Holm). A personagem é tomada por um desejo de revolução, e isso se dá, entre outras coisas, nesse quase namoro com um homem interessante, e que representa para ela uma saída possível para uma outra vida. Essa possibilidade, no entanto, acaba não se revelando eficaz, por razões que, quem assistir ao filme, poderá entender.
Em uma análise mais rasteira, A outra está longe de ostentar o brilho de muitas obras de Woody Allen, que já demonstrou ser capaz de muito mais, seja na comédia, que domina com habilidade inenarrável, seja no drama. Mesmo assim, significa ter contato com uma realidade audiovisual que não está distante de nosso cotidiano. Numa outra instância, é estar diante de um Allen psicanalítico, que não está preocupado em bancar Freud, mas em exteriorizar os fantasmas interiores que lhe atormentam, como acontece com qualquer pessoa. E o cinema, bem como o tragédia, em sua essência grega, presta-se excelentemente a esse esforço catártico.
P.S.: Não confundir com o filme homônimo de Justin Chadwick, lançado em 2008 com Scarlett Johannson e Natalie Portman no elenco.
20 de set. de 2010
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