16 de set. de 2010

A memória afetiva desdobrada em "O segredo dos seus olhos"

O cinema argentino vem sendo celebrado com frequência nos últimos anos. Tido como promissor, apresenta muitos nomes de relevância no cenário mundial, tais como Daniel Burman (O abraço partido, As leis de família), Marcelo Piñeyro (Plata quemada, Kamchatka) e Juan José Campanella, sendo este último bastante elogiado e lembrado por seu O filho da noiva (2001), que lhe rendeu importantes prêmios.
Dono de um estilo bastante afetuoso, Campanella mantém uma saudável parceria com Ricardo Darín, com quem trabalha pela quarta vez em O segredo dos seus olhos, depois de já tê-lo feito protagonista de O filho da noiva e, anteriormente, de O mesmo amor, a mesma chuva (1999), além de fazê-lo integrar o elenco principal de Clube da lua(2005).
Em O segredo dos seus olhos, Darín vive Benjamin Espósito, um investigador veterano que está à beira de sua aposentadoria, depois de anos de (bons) serviços prestados ao seu escritório. Finalmente, então, ele poderá se dedicar à escrita de seu livro, que versará sobre um crime que ele analisou há muitos anos, e que lhe deixou marcas profundas na memória. Uma memória um tanto afetiva, pelo fato de aquele crime ter sido objeto de seu trabalho. Querido por todos à sua volta, Benjamin tem um círculo de amigos interessante, que diverte por sua simplicidade, como é o caso de Gómez, interpretado pelo talentoso Javier Godino. Uma vez longe do trabalho, o protagonista poderá fazer a sua extensa pesquisa para compor os quadros que resultarão em seu romance.
A partir desse argumento, Campanella desdobra os meandros do crime que marcou Benjamin, fazendo com que o espectador entenda um pouco sobre como o fato se desenrolou. Porém, tudo é sempre filtrado pela ótica do personagem, vale lembrar. Com isso, vai sendo montado um grande mosaico de cores e formas de que derivará a consciência de que o crime não foi totalmente esclarecido. É quando começam as buscas de Benjamin para descobrir o que, de fato, ocorreu anos antes. Em meio às suas buscas, o personagem encontra tempo para divagar em sua paixão velada pela antiga colega de trabalho, a bela Irene (Soledad Villamil, um deleite para as retinas), com quem mantém uma relação pseudoprofissional, marcada pela languidez, principalmente da parte dela.

O segredo de seus olhos se baseia especificamente no mergulho de Benjamin nesse crime, e faz com que a narrativa do filme se alterne entre drama, comédia e suspense, num roteiro com todas as pontas muito bem amarradas, e isentas de previsibilidade. Para o espectador habituado a assumir a postura de um Sherlock Holmes, será interessante tentar descobrir que rumo o enredo tomará no fotograma seguinte, já que, de esclarecido, o crime não tem nada, o que desafia a compreensão de Benjamin. Uma cena que não se pode deixar de destacar é a que mostra a perseguição do protagonista ao criminoso em um estádio, onde a câmera de Campanella dimensiona o público para ângulos improváveis, capazes de tirar o fôlego de quem assiste à sequência. Definida como uma "ousadia narrativa" pela crítica, a cena faz muito cineasta reagir com estupefação.
É notável a desenvoltura com que Ricardo Darín se locomove no universo de Campanella, e sua naturalidade para a interpretação. Fica a dúvida: há muito de Espósito em Darín ou Darín absorveu toda a essência de Espósito. A sua química com Soledad Villamil também é evidente, o que torna o filme ainda mais irresistível. Sua vitória no Oscar de 2010, como melhor filme estrangeiro, só confirma a força de uma cinematografia de excelência e alta qualidade. Quando tudo parecia apontar para que A fita branca, de Michael Haneke, faturasse o prêmio, eis que uma história emotiva e bem contada avança no páreo. Ambos os filmes, cada qual à sua maneira, tem suas qualidades, o que demonstra a certeza de que, onde quer que se esteja, é possível fazer um bom cinema.

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