2 de set. de 2010

A história como entidade viva focalizada em "Arca russa"

Coragem foi, decerto, um sentimento que moveu o coração de Aleksandr Sokúrov quando da sua decisão de filmar "Arca russa". Corria o ano de 2002, quando o realizador do país de Lenin empreendeu uma árdua missão, que conjuga entretenimento, história e reflexão, só para ficar no tripé mais óbvio que se nos suscita diante da visão do filme mencionado. Depois que se descobre a característica central do longa, entende-se perfeitamente o porquê da dificuldade do projeto.

A ideia nasceu 15 anos antes das filmagens, e a preparação para que elas começassem a ocorrer durou 7 meses. Explica-se: "Arca russa" é formado por um único plano-sequência, que dura todo o tempo de projeção do filme. Para os menos entendidos de cinema, o plano-sequência consiste na filmagem de toda uma ação contínua em um filme por meio de um plano único, portanto, sem qualquer corte. Dada a natureza complexa dessa proposição, fica evidente que qualquer erro durante a captura das cenas é absolutamente fatal, gerando a necessidade de se recomeçar todo o projeto. Ao longo de 97 minutos, Sokúrov leva sua câmera a um passeio por 35 salas do museu Hermitage, localizado em São Petersburgo, que, dizem, é a cidade mais bela do mundo.
Com uma premissa como essa, há que se concluir que tudo no filme respira história. A ousadia de Sokúrov se traduz em cenas deslumbrantes, figurinos inacreditáveis, além de uma fotografia ora estática, ora espamódica, que se reveste de uma aura de devaneio, por conta de seu protagonista. O passeio pelo museu é "orientado", por assim, dizer, por uma espécie de ente fantasmagórico, que leva o espectador a entrar em portas por ele abertas, e a ter um encontro improvável com figuras emblemáticas da história da Rússia. Aos mais pragmáticos, vem quase imediatamente a questão: que me interessa da história da Rússia, se eu não vivo lá. De fato, os russos que assistiram ao filme devem ter tirado muito mais proveito do que viram do que os que vivem em qualquer outro país. Mas cinema também é viagem, também é conhecer lugares fascinantes aos quais não se tem acesso facilmente por outros meios. Então, estar diante de uma visão panorâmica da longo arcabouço de que é formada a história de um país pode, sim, ter grande representatividade.

Os números ostentados pelo Hermitage são verdadeiramente fascinantes: mais de 3 milhões de obras de arte e artefatos da cultura mundial, entre pinturas, esculturas, achados arqueológicos e material de numismática. De alguma maneira, o realizador russo nos aproxima de boa parte dessas preciosidades, que são a quintessência daquilo que se valoriza como arte. O lugar também já foi a residência de vários imperadores, tendo sido utilizado como palácio de inverno por muitos deles. Apenas por essas informações, já se depreende que o museu é um reduto legítimo onde repousa a arte, onde a origem da palavra (casa das musas) permanece assegurada.
Por conta de sua proposição, que se deu devido a razões que somente o próprio diretor pode explicar, "Arca russa" é um oásis de sensibilidade e de declaração de amor à arte. Como cinema, comprova a reafirma a sua vocação para enlevar o espírito, e levar o público ao conhecimento de um mundo que, dificilmente, seria descortinado para ele de alguma outra maneira. E, inevitavelmente, sua opção pela tomada única geradora de muitas ressonâncias filosóficas, sobre o valor da arte e o que realmente se deseja como fonte de deleite. Para dar conta de toda a população que se apresenta na tela, Sokúrov necessitou de 3 mil figurantes, o que só reafirma o trabalho estivo a que ele decidiu se submeter. O resultado final, porém, é sua maior recompensa.
Sua ideia acabou fazendo escola. No Brasil, Gustavo Spolidoro decidiu seguir o mesmo caminho do único plano-sequência, rodando seu "Ainda orangotangos" nas ruas portoalegrenses em 2008. E, antes disso, Alfonso Cuarón, em 2006, lançou mão do recurso, em duração bem menor, em "Filhos da esperança", numa cena crucial do filme. Como se vê, a estratégia adotada por Aleksandr Sokúrov rendeu frutos, e exemplifica, mais uma vez, a capacidade de diálogo que a verdadeira arte por demonstrar.

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