23 de set. de 2010

Alegrias e agruras de uma relação à distância em "Mary e Max - Uma amizade diferente"

Uma das mais gratas surpresas do ano de 2010 foi, sem sombra de dúvida, Mary e Max -Uma amizade diferente. A animação australiana, dirigida por Adam Elliott, é simplesmente um grande achado em termos de narrativa, de enredo e de como tocar fundo o coração de qualquer ser humano, mesmo aqueles que parecem não ter um. Ao longo de seus 80 minutos de duração, o cineasta vai criando no público uma sensação de pertencimento àquela história, que praticamente impede a quem está assistindo ao filme de passar incólume a ele. Tudo começa quando Mary, uma garotinha retraída e solitária de 8 anos,começa a aumentar seus questionamentos sobre o mundo e as pessoas. Incapaz de se relacionar normalmente com os colegas de sua escola, ela decide começar a se corresponder com uma pessoa escolhida ao acaso em uma lista telefônica.

Mary é baixinha e sente dificuldade enorme em pertencer a um grupo, como seria esperado para qualquer menina de sua idade. Ela tem uma mãe com quem não mantém qualquer diálogo saudável, o que agrava a sua desorientação perante a realidade. Depois de decidir escrever para um desconhecido, ela acaba tendo sua carta enviada para Max, um homem de 44 anos, que concentra uma série de características que só o tornam repelente para a sociedade em que vive: judeu, obeso, e com síndrome de Asperger, uma anomalia que o impede de se desenvolver mentalmente como um adulto normal, gerando-lhe um comportamento parecido com o de uma criança da idade de Mary. Os futuros amigos moram a quilômetros de distância um do outro, já que Mary vive na Austrália, mais precisamente em Melbourne, enquanto Max habita em Nova York.
Para quem imaginava uma animação nos moldes daquelas produzidas pela Disney/Pixar ou pela Dream Works, a surpresa já começa pelo início da sinopse, comentado acima. E Mary e Max - Uma amizade diferente, vai muito além disso. Na verdade, logo se percebe que o filme, apesar de um animação, não é exatamente recomendável para todos os públicos, já que oferece um tipo de reflexão de que, normalmente, filmes desse "nicho" não dão conta. Elliot subverte nossas expectativas ao colocar na tela uma Melbourne apática, bem como uma Noya York plúmbea, de céus opressores, análogos à percepção da realidade de Max. Vale o comentário de que a animação é inteiramente realizada com massa de modelar, por meio das quais os personagens e os cenários forma sendo construídos e, posteriormente, ganharam "vida" por computação gráfica. Independentemente desse fato, os protagonistas exalam uma humanidade que, certas vezes, não se verifica em atores de carne e osso.

Isso revela que a escolha de Adam Elliot pela animação em stop motion foi muito feliz, já que fica difícil imaginar um filme com atores reais, da forma que é conduzido. Na versão original, legendada em solo brasileiro, as vozes de Mary e Max pertencem, respectivamente, a Toni Collette e a Philip Seymour Hoffman, o que confere ainda mais charme aos personagens, para quem é fã do trabalhos desses intérpretes, além de conferir ainda mais humanidade aos protagonistas. Collette, por sinal, também é australiana. A amizade entre os dois vai se desenvolvendo gradativamente, mas sempre enfrentando agruras e alegrias que qualquer amizade enfrentaria, mas que, pelo fato de ser à distância, sao potencializadas para além do comum.
Com a resposta de Max à sua carta, em que vão perguntas variadas sobre a população dos EUA, sobre a qual sua mãe contou vários mitos, Mary se entusiasma e decide enviar uma nova missiva ao novo amigo. E, assim, anos a fio vão se transcorrendo, de maneira que eles vão ocupando suas rotinas com a troca de correspondências, em que discorrem acerca dos mais variados assuntos, sempre à procura de respostas para os enigmas que lhes vão interessando dia após dia. As dúvidas que surgem são um belo achado do roteiro, que valoriza sobretudo os diálogos nessa crônica cotidiana facilmente aprazível por espectadores ávidos de entrar em contato com uma boa história.

Não faltam nessas conversas aspectos interessantes e algo bizarros da natureza humana, como o cachorro-quente de chocolate idealizado por Mary, cuja receita ela envia para Max, que também se propõe a fazê-lo. Por conta de sua doença, Max tem a idade mental equiparada à idade biológica de Mary, e eles entram em una fina sintonia desde o início de seu contato por causa disso. Max expõe seus medos e seus traumas, e Mary, fazendo as vezes de mãe ou de irmã mais velha, vai aconselhando seu amigo a se abrir mais para as pessoas à sua volta. No ápice de suas crises de pânico, ele mal sabe como agir, pois, em suas próprias palavras, "os seres humanos são muito estranhos", e ele não consegue decifrar o que os outros querem dizer através da observação de seus olhares, que lhes são sempre enigmáticos e angustiantes por serem enigmáticos.
Quando é incentivado por Mary a procurar dar uma chance ao convívio com outras pessoas de sua cidade, Max decide experimentar, mas suas tentativas acabam sempre sendo frustradas, o que o leva a uma fuga dentro de seu apartamento, que é o cosmos onde ele se sente realmente à vontade. Na amizade que travam ao longo dos anos, Mary e Max têm um no outro uma janela para o mundo, um interlocutor constante para a expressão de suas inquietudes e interdições, sem que recebam de volta censura ou litígio. Como um animalzinho de estimação, que não cobra que as palavras de seu dono façam sentido, Mary e Max se mostram um para o outro com uma postura assumidamente fragmentária, sem a pretensão de que serão absolutamente capazes de juntar seus cacos.
Com o avanço do tempo, Mary se torna uma adolescente, e sua mudança natural de concepção sobre a vida a leva a arranjar um namorado, de quem ela fala sempre para Max, até o dia em que faz uma surpreendente constatação a respeito do rapaz. Na troca de correspondências entre os amigos, o roteirista insere pitadas de um humor amargo, causando a mistura de sensações de alegria e tristeza, de choro e riso, em que as ouve sendo lidas por eles. Elliott merece sem brindado por sua iniciativa de levar às telas uma animação tão diferente daquelas a que estamos habituados há tanto tempo. Faz bem à alma e o coração descansar os olhos da estroboscopia (que também tem seu valor, na hora certa), e mergulhar em uma narrativa sincera sobre a imprecisão da vida e da nossa impotência diante de certas descobertas da existência. Vale lembrar que, por seu teor de tristeza, reforçado pelo final que, certamente, soará impactante, Mary e Max - Uma amizade diferente não é um filme que se deva recomendar para crianças muito pequenas, que podem ser confrontadas com uma realidade assustadora. Os jovens e adultos, porém, podem se fartar com as inúmeras referências às desolações que assolam o seu mundo.

"Em Paris" ou simplesmente mais um dia como outro qualquer

No âmbito da cinematografia contemporânea francesa, é notável o talento de alguns diretores que, apesar de jovens, já vêm calcando suas carreiras com obras de qualidade inenarrável. Os dois grandes realizadores dessa nova safra são François Ozon, que vem dirigindo, em média, um filme por ano, e Christophe Honoré, também dono de uma filmografia iniciada há poucos anos, mas já apresentando um bom número de exemplares. Cada qual ao seu estilo, mas pertecentes à mesma geração, eles buscam entender o que se passa na cabeça dos jovens, ricos e entediados, que parecem levar suas existências em uma sucessão de dias banais, sem a preocupação de que o dia seguinte pode não chegar. Essa observação da rotina niilista da juventude atual alcançou seu apogeu com Em Paris, mas uma entre tantas produções que
carregam o nome da capital francesa em seu título, e cuja direção pertence a Honoré, também responsável por títulos como Ma mère (não lançado no Brasil), Canções de amor e A bela Junie.
A trama é focada em dois irmãos de comportamentos antagônicos, o que, em si, não representa qualquer inovação, visto que, anualmente, filmes aos montes são produzidos com base nesse argumento. Independente disso, originalidade não deve ser condição sine qua non para que se decida por assistir a um filme. Mais vale uma história corriqueira sendo bem contada que uma premissa fenomenal que não se desenvolve a contento - deixemos esse comentário para um certo Almas à venda, só para ficar em um exemplo recente. Digressões à parte, esse é apenas ponto de partida de Em Paris, cuja narrativa é condensada em um único dia na vida desses dois irmãos. A propósito, eles se chamam Paul (Romain Duris) e Jonathan (Louis Garrel), e voltam a morar juntos depois que o segundo se separa de sua namorada.
Com isso, suas personalidades diversas ficam novamente encerradas em um mesmo ambiente, o que faz com que eles contraponham e/ou justaponham suas visões sobre a vida, o amor, as mulheres e outros assuntos em suas conversas. O fato de Paul e Jonathan terem olhares bastante diferentes sobre o mundo não lhes impede de manter uma forte cumplicidade, que culmina com gestos íntimos de demonstração de carinho mútuo, que podem gerar certa desconfiança no espectador que começar a ver o filme depois de seu início. Há uma cena em que os um deles está na banheira, e outro entra nela também para consolá-lo, já que ele não se conforma com o fim do casamento. Durante as 24 horas que se sucedem na vida de Paul e Jonathan, eles explicitam a maneira como encaram a vida, adotando comportamentos distintos. Enquanto Paul permanece enclausurado no apartamento, onde também mora o pai deles, Mirko(Guy Marchand), Jonathan prefere caminhar pelas ruas, à caça de uma nova conquista a cada esquina.

É impressionante o charme de Jonathan, que, como logo se percebe, é o irmão mais novo. Personificado por Louis Garrel, cuja projeção se deu no já legendário Os sonhadores, ele é o retrato do bon vivant, que saracoteia inadvertidamente por veredas da desocupação, sem se interessar em fazer qualquer coisa de útil. Garrel se tornou o ator preferido de Honoré, e já soma cinco trabalho seguidos sob a batuta do realizador. De fato, é um ator muito talentoso, que sabe como hipnotizar a plateia a cada aparição de um personagem seu. Ao longo de Em Paris, é exatamente assim que ele sempre surge: livre e lépido, como uma lebre. Não perde tempo em conquistar, e sempre triunfa com o garbo de um Casanova que colhe o fruto que antes espreita com diligência, que, em seu caso, são as jovens em fase de efervescência hormonal, exalando estrogênio por onde passam, misturado a um feromônio que atrai inexoravelmente.
Por sua vez, Paul vai desenvolvendo o mesmo tipo de depressão que levou sua irmã ao suicídio, algum tempo antes, o que leva Mirko a várias tentativas de tirar o filho de sua inércia. Nesse sentido, Paul é realmente o extremo oposto de Jonathan. Se os dois fossem nuvens, Paul seria um cúmulo nimbo, daquele bem carregado, prestes a chover a qualquer momento, enquanto Jonathan seria um alto cirro, que se despedaça facilmente com o calor do sol, por ser fino e pouco consistente. De alguma forma, essa discrepância de naturezas os aproxima, refinando a afeição que nutrem um pelo outro. Com sua luminosidade, Jonathan vai tentando enredar Paul em um atmosfera de alegria, sufocando suas verbalizações de descontentamento, mas não é tão simples quanto possa parecer.
Como se pode depreender dessa crítica, a narrativa de Em Paris se fixa em um espaço circunscrito de um único dia para mostrar apenas aspectos ordinários da trajetória de seres absolutamente comuns. O pai dos dois, Mirko, também não apresenta nenhuma grandeza, e encara sua vida com a maior simplicidade possível. O intéprete de Mirko, por sinal, é um indício da homenagem que Honoré se propôs a render com esse longa à nouvelle vague. Trata-se de Guy Marchand, um ator habitualmente presente no elenco de filmes desse movimento cinematográfico. Os enquadramentos da câmera, a fotografia minimalista e a narrativa apontam para uma espécie de filiação do diretor aos grandes nomes que compuseram a nouvelle vague. Por meio de Em Paris, o jovem cineasta nos abre uma janela com vista para a filigrana do talento.
Acompanhar o filme é descobrir que Christophe Honoré desenvolve uma história simples e cotidiana com habilidade e desevelo, sem se preocupar demasiadamente em ser original, mas em se apresentar como tributário de uma forma de fazer cinema que muito modificou a perspctiva dos diretores franceses, assim como de boa parte da Europa. Orçado em apenas 1,5 milhão de euros, Em Paris é cinema em estado puro, com belas imagens oriundas do apuro visual de Jean-Louis Vialard, responsável pela fotografia, e com atuações seguras e econômicas dos protagonistas, que tornam os 92 minutos de projeção um belo programa para se fazer no cair da tarde de um sábado morno e reflexivo. Os questionamentos que todos nos fazemos sobre o dia a dia e a vida estão lá, longe de serem mascarados por um final feliz à Holywood, que pasteuriza até mesmo a ideia de felicidade.

20 de set. de 2010

"A outra": uma tentativa de satisfação de desejos velados pelo tempo

Ao longo de sua extensa filmografia, Woody Allen se permitiu fazer incursões muito bem-sucedidas pelo terreno da comédia, tornando o seu nome um dos mais inesquecíveis no gênero. Não é exagero, portanto, dizer que Allen está para a comédia assim como Hitchcock está para o suspense. Cada qual demonstra (demonstrou) ser exímio naquilo que faz (ou fez), o que torna a espera por seu próximo trabalho um delicioso suplício. Entretanto, Allen não se restringiu aos filmes que provocavam risos, e também se aventurou no drama, sendo responsável por alguns dos filmes mais subestimados do nosso tempo. Em fins dos anos 70, trouxe Interiores (1978), longa dotado de uma atmosfera bergmaniana flagrante. Ele nunca escondeu de ninguém que Bergman é seu diretor predileto, e voltou a demonstrar essa predileção dez anos depois com A outra.

Aqui, filmou a história de uma mulher em busca de um encontro consigo mesmam, vivida pela talentosa Gena Rowlands. Foi o bastante para que, como com Interiores, o cineasta fosse rechaçado, tendo seu filme definido como uma tentativa coxa de se aproximar do realizador sueco. Trata-se de uma tremenda injustiça, que merece ser corrigida. E a melhor forma de se fazê-lo é assistindo ao filme, o que não é sacrifício algum. A trama gira em torno de Marion Post (Rowlands), uma escritora que está em processo de construção de seu novo livro. Sua rotina começa a sofrer alterações quando ela precisa se mudar temporariamente para um apartamento onde poss escrever com mais tranquilidade. Com isso, isola-se em um lugar que tem um problema acústico, o que lhe permite ouvir as lamentações de uma paciente que se consulta com a psiquiatra que trabalha no apartamento ao lado.
É com esse argumento simples e atiçador que Allen desenvolve, durante enxutos 84 minutos, uma história de autodescoberta a partir da observação do outro em suas minúcias e contradições. Um teor fílmico bastante parecido com a obra de Bergman, que, a cada novo trabalho, procurava mais e mais dissecar os interstícios da natureza humana, o que resultava em belos ensaios sobre a condição dos homens. Allen também demonstra essa busca em A outra (Another woman, no original) talvez, no máximo, com uma perspectiva mais modesta. De fato, não está entre os grandes filmes do diretor. Mas um filme não tão bom de Woody Allen nos deixa, no mínimo, com a sensação de que estamos diante de um velho conhecido, ouvindo falar em um de seus dias de menos inspiração.
Voltando ao enredo do filme, a história de vida da mulher estranha que Marion ouve desperta-lhe o interesse, e ela quer conhecer melhor aquela pessoa que está em uma fase tão conturbada. Aquela mulher estranha se chama Hope, um nome bastante sugestivo, certamente não tendo sido escolhido ao acaso pelo diretor e roteirista, já que, em português, sua tradução é "esperança". É exatamente o sentimento que falta à personagem, que parece estar se afastando progressivamente da sanidade a cada novo passo que ensaia dar. Não demora para que Marion tente se aproximar um pouco mais de Hope, que se revela arredia, quase o extremo oposto dela.
Allen faz com que dois polos contrastantes entrem em contato, dando ao espectador a noção de que, o que nos atrai no outro pode ser muito daquilo que temos dentro de nós mesmos. Quando a arrogância ou a irreverência de alguém nos incomoda, pode ser porque estamos olhando como que por um espelho a outra pessoa. Quando reclamamos que fulano nos tira do sério, podemos estar nos referindo ao reflexo de nossa própria imagem sendo visto nessa pessoa.
Por esse motivo, dentre vários, A outra é um filme bastante atraente, pois coloca o público em contato com um lado incômodo de sua personalidade. Marion, envolvida pela forma libertária com que vê Hope levar a vida, livre de amarras que impõem o convívio social, inicia um romance canhestro com Larry (Gene Hackman), mesmo tendo um casamento de longa data com Ken (Ian Holm). A personagem é tomada por um desejo de revolução, e isso se dá, entre outras coisas, nesse quase namoro com um homem interessante, e que representa para ela uma saída possível para uma outra vida. Essa possibilidade, no entanto, acaba não se revelando eficaz, por razões que, quem assistir ao filme, poderá entender.
Em uma análise mais rasteira, A outra está longe de ostentar o brilho de muitas obras de Woody Allen, que já demonstrou ser capaz de muito mais, seja na comédia, que domina com habilidade inenarrável, seja no drama. Mesmo assim, significa ter contato com uma realidade audiovisual que não está distante de nosso cotidiano. Numa outra instância, é estar diante de um Allen psicanalítico, que não está preocupado em bancar Freud, mas em exteriorizar os fantasmas interiores que lhe atormentam, como acontece com qualquer pessoa. E o cinema, bem como o tragédia, em sua essência grega, presta-se excelentemente a esse esforço catártico.


P.S.: Não confundir com o filme homônimo de Justin Chadwick, lançado em 2008 com Scarlett Johannson e Natalie Portman no elenco.

16 de set. de 2010

A memória afetiva desdobrada em "O segredo dos seus olhos"

O cinema argentino vem sendo celebrado com frequência nos últimos anos. Tido como promissor, apresenta muitos nomes de relevância no cenário mundial, tais como Daniel Burman (O abraço partido, As leis de família), Marcelo Piñeyro (Plata quemada, Kamchatka) e Juan José Campanella, sendo este último bastante elogiado e lembrado por seu O filho da noiva (2001), que lhe rendeu importantes prêmios.
Dono de um estilo bastante afetuoso, Campanella mantém uma saudável parceria com Ricardo Darín, com quem trabalha pela quarta vez em O segredo dos seus olhos, depois de já tê-lo feito protagonista de O filho da noiva e, anteriormente, de O mesmo amor, a mesma chuva (1999), além de fazê-lo integrar o elenco principal de Clube da lua(2005).
Em O segredo dos seus olhos, Darín vive Benjamin Espósito, um investigador veterano que está à beira de sua aposentadoria, depois de anos de (bons) serviços prestados ao seu escritório. Finalmente, então, ele poderá se dedicar à escrita de seu livro, que versará sobre um crime que ele analisou há muitos anos, e que lhe deixou marcas profundas na memória. Uma memória um tanto afetiva, pelo fato de aquele crime ter sido objeto de seu trabalho. Querido por todos à sua volta, Benjamin tem um círculo de amigos interessante, que diverte por sua simplicidade, como é o caso de Gómez, interpretado pelo talentoso Javier Godino. Uma vez longe do trabalho, o protagonista poderá fazer a sua extensa pesquisa para compor os quadros que resultarão em seu romance.
A partir desse argumento, Campanella desdobra os meandros do crime que marcou Benjamin, fazendo com que o espectador entenda um pouco sobre como o fato se desenrolou. Porém, tudo é sempre filtrado pela ótica do personagem, vale lembrar. Com isso, vai sendo montado um grande mosaico de cores e formas de que derivará a consciência de que o crime não foi totalmente esclarecido. É quando começam as buscas de Benjamin para descobrir o que, de fato, ocorreu anos antes. Em meio às suas buscas, o personagem encontra tempo para divagar em sua paixão velada pela antiga colega de trabalho, a bela Irene (Soledad Villamil, um deleite para as retinas), com quem mantém uma relação pseudoprofissional, marcada pela languidez, principalmente da parte dela.

O segredo de seus olhos se baseia especificamente no mergulho de Benjamin nesse crime, e faz com que a narrativa do filme se alterne entre drama, comédia e suspense, num roteiro com todas as pontas muito bem amarradas, e isentas de previsibilidade. Para o espectador habituado a assumir a postura de um Sherlock Holmes, será interessante tentar descobrir que rumo o enredo tomará no fotograma seguinte, já que, de esclarecido, o crime não tem nada, o que desafia a compreensão de Benjamin. Uma cena que não se pode deixar de destacar é a que mostra a perseguição do protagonista ao criminoso em um estádio, onde a câmera de Campanella dimensiona o público para ângulos improváveis, capazes de tirar o fôlego de quem assiste à sequência. Definida como uma "ousadia narrativa" pela crítica, a cena faz muito cineasta reagir com estupefação.
É notável a desenvoltura com que Ricardo Darín se locomove no universo de Campanella, e sua naturalidade para a interpretação. Fica a dúvida: há muito de Espósito em Darín ou Darín absorveu toda a essência de Espósito. A sua química com Soledad Villamil também é evidente, o que torna o filme ainda mais irresistível. Sua vitória no Oscar de 2010, como melhor filme estrangeiro, só confirma a força de uma cinematografia de excelência e alta qualidade. Quando tudo parecia apontar para que A fita branca, de Michael Haneke, faturasse o prêmio, eis que uma história emotiva e bem contada avança no páreo. Ambos os filmes, cada qual à sua maneira, tem suas qualidades, o que demonstra a certeza de que, onde quer que se esteja, é possível fazer um bom cinema.

13 de set. de 2010

"Cada um com seu cinema", um genuíno poema de amor coletivo

A simples menção da ficha técnica de "Cada um com seu cinema" não deixa qualquer dúvida: os nomes envolvidos nessa procução são um enlevo para olhos e corações de todos os cinéfilos, em maior ou menor grau. Trata-se de uma ideia ambiciosa. Por meio de trinta e três curtas, de três minutos e meio cada, trinta e quatro cineastas puseram a mão na massa para homenagear a sétima arte. Com isso, formaram um engenhoso jogo metalinguístico em que seu próprio ofício é objeto de admiração. Participaram dessa empreitada nomes os mais heterogêneos possíveis, cujo resultado pode ser eficientemente definido pela palavra "mosaico", que, apesar de um tanto clichê, serve bem para classificar o conjunto da obra.
O ponto de partida para a compilação dos curtas foi a chegada do 60º aniversário do festival de Cannes, uma das plataformas europeias mais importantes para a cinematografia mundial. A "encomenda", por assim dizer, foi feita pelo diretor do festival, Gilles Jacob, que reuniu um time de realizadores legendários, cuja missão era falar de sua relação pessoal com a sétima arte, sem, necessariamente, abrir mão de seu estilo. Tendo essa premissa, eles rodaram suas pequenas histórias, que, de pequenas, têm somente a duração, pois cada um, à sua maneira, conseguiu dosar suas características como diretor para servir a um bom argumento. No final das contas, "Cada um com seu cinema" tem de tudo, um pouco.

Um dos vários aspectos interessantes do filme está logo em seu título original, um tanto comprido, mas que é uma boa síntese do espírito que norteia cada um de seus segmentos. Em bom francês, o título é: Ce petit coup au coeur quand la lumière s'éteint et que le film commence, cuja tradução para o nosso idioma é impregnada de poesia: esse pequeno golpe no coração quando a luz se apaga e o filme começa. Tal frase só poderia ser concebida por quem se deixa tocar pela magia que essa arte universal gera. E o time de diretores, já tão propalado, é um desfile de astros e estrelas que não deixa mentir sobre as qualidades do longa.
Seria enfadonho mencionar todos eles, mas vale a pena enumerar ao menos alguns: Gus Van Sant, Theo Angeloupoulos, Jane Campion, Aki Kaurismäki, Lars Von Trier, Chen Kaige, Youssef Chahine, Ken Loach, Walter Salles, Nanni Moretti, David Cronemberg, Ethan e Joel Coen, Takeshi Kitano, Claude Lelouch, David Lynch e tantos outros que consumiriam várias linhas dessa crítica.
Da mesma forma que cansaria citar todos que dirigem os curtas, também não é conveniente. Ainda assim, cabe comentar alguns dos talentos que vão surgindo a cada filmete: Josh Brolin, Jeanne Moreau, Michel Piccoli, Sara Forestier, entre tantos outros nomes heterogêneos. "Cada um come seu cinema" também é uma bela oportunidade para ver alguns diretores em cena, dando expedientes como diretores. É o caso de Lars Von Trier, responsável por um dos segmentos de mais humor negro: Occupations. Na história, Von Trier faz um espectador que está no cinema tentando assistir a um filme que lhe interessa, mas não consegue aproveitar a sessão por causa de um homem que o incomoda com uma série de comentários desagradáveis. A solução encontrada por Von Trier é assassinar o homem inconveniente, de um modo nada sutil, ao que se segue uma indefectível expressão de alívio e contentamento.
Outras histórias vão sendo alinhavadas umas após as outras, trazendo diferentes aspectos dessa arte que seduz e arrebata, também sendo protagonizadas por cineastas. Em "Diario di uno spettatore", Nanni Moretti exercita seu estilo prolixo com as desventuras de um amante do cinema em suas andanças por várias salas de exibição em que foi ver filmes. Nos três minutos de que dispõe para seu curta, Moretti fala sem parar, podendo ser considerado uma versão italiana de Woody Allen, outro diretor famoso por sua verborragia. Aliás, a ausência de Allen é muito sentida, e não é justificável sob nenhum aspedto, já que sua extensa filmografia é um passaporte claro para sua inclusão no rol de realizadores selecionados para compor o painel solicitado por Gilles Jacob. Seja como for, o espetáculo composto pelos trinta e três pequenos filmes é de tirar o fôlego (aqui vai mais um clichê...).
Um diretor brasileiro também está entre os nomes de "Cada um com seu cinema". É Walter Salles, que presta uma merecida homenagem ao cinema francês com seu segmento, especificamente aquele praticado na década de 60, por uma trupe de cineastas originários do corpo de críticos da revista "Cahiers de cinéma", tal como François Truffaut, a quem a honra é ainda mais notória, quando os personagens do filme observam o letreiro de um cinema em que está sendo exibido "Les 400 coups". Para quem não sabe, trata-se do título original de "Os incompreendidos", obra inaugural de Truffaut, até hoje uma das mais celebradas de sua prolífica carreira. Em pleno interior do Nordeste, testemunhamos a chegada de um filme tão idílico para o deleite dos cinéfilos locais. É uma justa e oportuna menção.
Uma grande vantagem que se tem assistindo à coletânea de curtas é que o espectador tem a chance de entrar em contato com a obra de mais de uma dezena de diretores, que imprimem seu modo particular de filmar às mini películas que deslumbram o público. Pode-se partir daqui para ir em busca de longas precedentes ou posteriores dirigidos pelos realizadores. Fica clara mais uma função interessante do filme: a de cartão de visitas. Sem qualquer objeção à continuidade do longa como um todo, "Cada um com seu cinema" apresenta irregularidades. Mas, aqui, ela é uma qualidade, por mais paradoxal que isso possa parecer. No passeio pelas várias visões de cinema, tem-se poesia, como no segmento de Gus Van Sant, em que o cinema é retratado como um portal para os sonhos mais inacrediráveis, ironia, como no delírio surpreendente de Jane Campion, iconoclastia velada, como no trecho que cabe a Manoel de Oliveira, dentre várias outras caracaterísticas. Amarrando-se tudo, observa-se uma súmula do modo de fazer cinema de vários continentes e de vários países. Uma obra inclassificável em menos de uma frase, "Cada um com seu cinema" é, entre muitas outras coisas, um genuíno poema de amor coletivo à sétima arte.

3 de set. de 2010

"O quarto do filho", uma ótica terna sobre perdas e reinvenções

Comumente associados à exaltação vocal e aos gestos exagerados, os italianos não são apenas essa faceta a que nós, brasileiros, costumamos nos referir quando fazemos alusão a eles. Isso fica muito claro quando se assiste a "O quarto do filho", um sensível exercício artístico pontuado atrás das lentes das câmeras por Nanni Moretti. O realizador italiano, do alto de seus 57 anos de idade, já produziu muitas obras que merecem ser vistas com atenção. Desde sua estreia no cinema, como ator e diretor, em "Eu sou um autárquico"(1976), passando por um papel em "Pai patrão" (1977), dos legendários irmãos Paolo e Vittorio Taviani, e outra experiência como ator e diretor em "Bianca" (1984), Moretti já entregou ao público um ponto de vista ora trágico, ora cômico sobre o peso das vicissitudes na vida de um ser humano comum.

Filmado em 2001, "O quarto do filho" é seu trabalho mais representativo como cineasta e, sem dúvida, um de seus mais densos. Em pouco mais de uma hora e meia, ele perscruta as chagas geradas em um pai diante da perda definitiva de um filho. Andrea(Antonio Petrocelli), o filho do título, vem dando muitas dores de cabeça a Giovanni (Moretti), por conta de sua fase rebelde, típica da adolescência. O cúmulo dessa rebeldia se traduz numa acusação pelo roubo de um fóssil da escola onde ele estuda. Com isso, Giovanni vê a necessidade crescente de investigar o que, de fato, o filho anda fazendo. E, em decorrência dessa investigação, alcançar uma proximidade maior com o jovem. Essa proximidade acaba acontecendo, mas começa um pouco tarde demais. Giovanni entra numa espiral de questionamentos sobre a educação que deu ao seu filho, sem saber dizer se fez o melhor para Andrea.
São esses momentos de crise vividos por Giovanni que começam a pavimentar o terreno da carga emocional que o filme apresenta. Moretti constrói um retrato afetivo dos laços que podem unir pai e filho, levando a uma reflexão generalizada a respeito do que pode levar essa relação a progredir ou a degringolar. O tratamento dado pelo realizador àquelas pequenezas que podem minar qualquer convivência é meticuloso, e passível de identificação. Giovanni, seu personagem, é um psicanalista que ouve muitas lamentações, sempre em tom confessional, em seu consultório, e isso, de alguma maneira, deveria ensiná-lo a lidar melhor com os conflitos que surgem dentro de sua própria casa. Mas não é o que acaba acontecendo. Por sua sala passam tipos com os mais variados problemas, e é aí que entram em cena as participações especiais convidadas pelo diretor: Silvio Orlando, como um homem em crise, e Stefano Accorsi, na pele de um maníaco incapaz de dominar seus passos.
A fotografia de "O quarto do filho" é primorosa, pela maneira como toca o coração do espectador. A cargo de Giuseppe Lanci, ela exala o desalento que toma conta de Andrea depois que uma tragédia interrompe seu relacionamento com o filho. E as belas imagens são embaladas por canções belas de doer, fruto de uma trilha sonora da qual Nicola Piovani é signatário. Somados, esses dois aspectos conferem uma ternura apaixonante ao filme, que funciona como um ollhar dolorido sobre a perda, em variadas instâncias. Giovanni sente que jamais será o mesmo diante da partida repentina de Giuseppe, e isso se revela a cada passo claudicante que ele começar a dar em sua jornada de tentativa de conformação.
Em outro filme recente, um personagem de Moretti também se vê obrigado a lidar com a perda, mas, dessa vez, da esposa. Sua reação ao fato é, no mínimo, inusitada, pois que se traduz em um comportamento de quase resignação mesclado a uma ida à luta, por assim dizer. Trata-se de "Caos calmo" (2007), em que o diretor Antonello Grimaldi adapta o romance homônimo de Sandro Veronesi para tratar do luto que cabe a cada um. Nesse sentido, o filme se aproxima de "O quarto do filho", pois se utiliza de uma matéria-prima parecida para contar uma história densa e emocionante. Em ambos os casos, seja como Giovanni em "O quarto do filho", seja como o Pietro de "Caos calmo", Moretti tem de lidar com a reinvenção que se torna urgente diante de um quadro de revés. Merecidamente, o diretor faturou a Palma de Ouro em Cannes pelo filme, o que só coroa seu esforço em navegar pelas águas amargas e nefastas da perda de um ente querido.

2 de set. de 2010

A história como entidade viva focalizada em "Arca russa"

Coragem foi, decerto, um sentimento que moveu o coração de Aleksandr Sokúrov quando da sua decisão de filmar "Arca russa". Corria o ano de 2002, quando o realizador do país de Lenin empreendeu uma árdua missão, que conjuga entretenimento, história e reflexão, só para ficar no tripé mais óbvio que se nos suscita diante da visão do filme mencionado. Depois que se descobre a característica central do longa, entende-se perfeitamente o porquê da dificuldade do projeto.

A ideia nasceu 15 anos antes das filmagens, e a preparação para que elas começassem a ocorrer durou 7 meses. Explica-se: "Arca russa" é formado por um único plano-sequência, que dura todo o tempo de projeção do filme. Para os menos entendidos de cinema, o plano-sequência consiste na filmagem de toda uma ação contínua em um filme por meio de um plano único, portanto, sem qualquer corte. Dada a natureza complexa dessa proposição, fica evidente que qualquer erro durante a captura das cenas é absolutamente fatal, gerando a necessidade de se recomeçar todo o projeto. Ao longo de 97 minutos, Sokúrov leva sua câmera a um passeio por 35 salas do museu Hermitage, localizado em São Petersburgo, que, dizem, é a cidade mais bela do mundo.
Com uma premissa como essa, há que se concluir que tudo no filme respira história. A ousadia de Sokúrov se traduz em cenas deslumbrantes, figurinos inacreditáveis, além de uma fotografia ora estática, ora espamódica, que se reveste de uma aura de devaneio, por conta de seu protagonista. O passeio pelo museu é "orientado", por assim, dizer, por uma espécie de ente fantasmagórico, que leva o espectador a entrar em portas por ele abertas, e a ter um encontro improvável com figuras emblemáticas da história da Rússia. Aos mais pragmáticos, vem quase imediatamente a questão: que me interessa da história da Rússia, se eu não vivo lá. De fato, os russos que assistiram ao filme devem ter tirado muito mais proveito do que viram do que os que vivem em qualquer outro país. Mas cinema também é viagem, também é conhecer lugares fascinantes aos quais não se tem acesso facilmente por outros meios. Então, estar diante de uma visão panorâmica da longo arcabouço de que é formada a história de um país pode, sim, ter grande representatividade.

Os números ostentados pelo Hermitage são verdadeiramente fascinantes: mais de 3 milhões de obras de arte e artefatos da cultura mundial, entre pinturas, esculturas, achados arqueológicos e material de numismática. De alguma maneira, o realizador russo nos aproxima de boa parte dessas preciosidades, que são a quintessência daquilo que se valoriza como arte. O lugar também já foi a residência de vários imperadores, tendo sido utilizado como palácio de inverno por muitos deles. Apenas por essas informações, já se depreende que o museu é um reduto legítimo onde repousa a arte, onde a origem da palavra (casa das musas) permanece assegurada.
Por conta de sua proposição, que se deu devido a razões que somente o próprio diretor pode explicar, "Arca russa" é um oásis de sensibilidade e de declaração de amor à arte. Como cinema, comprova a reafirma a sua vocação para enlevar o espírito, e levar o público ao conhecimento de um mundo que, dificilmente, seria descortinado para ele de alguma outra maneira. E, inevitavelmente, sua opção pela tomada única geradora de muitas ressonâncias filosóficas, sobre o valor da arte e o que realmente se deseja como fonte de deleite. Para dar conta de toda a população que se apresenta na tela, Sokúrov necessitou de 3 mil figurantes, o que só reafirma o trabalho estivo a que ele decidiu se submeter. O resultado final, porém, é sua maior recompensa.
Sua ideia acabou fazendo escola. No Brasil, Gustavo Spolidoro decidiu seguir o mesmo caminho do único plano-sequência, rodando seu "Ainda orangotangos" nas ruas portoalegrenses em 2008. E, antes disso, Alfonso Cuarón, em 2006, lançou mão do recurso, em duração bem menor, em "Filhos da esperança", numa cena crucial do filme. Como se vê, a estratégia adotada por Aleksandr Sokúrov rendeu frutos, e exemplifica, mais uma vez, a capacidade de diálogo que a verdadeira arte por demonstrar.