30 de mar. de 2012

Luzes da cidade, uma obra de arte inenarrável


A gentileza e a solidariedade são as grandes protagonistas de Luzes da cidade (City lights, 1931), um dos mais lembrados filmes de Charles Chaplin. Despojado de qualquer fala audível, o longa é uma admirável carta de amor aos dois sentimentos, que encontram cada vez menos guarida nas relações interpessoais entre seres humanos. Aqui, ele novamente interpreta o personagem que acabou por se transformar em seu alter ego, o malandro Carlitos, em mais um roteiro que privilegia uma sucessão de pequenos enganos que arrancam risadas do público. Sem eira nem beira, ele vive pelas ruas, dependendo da bondade alheia e se virando como pode, até o dia em que salva um milionário de sua tentativa de suicídio e trava amizade com ele. A luta do personagem para salvar aquele homem é quase inglória e divertidíssima, por conta de sua levada sempre cômica. Entre resgates e quedas sucessivas na água, ele consegue proteger a vida daquele homem tão atormentado. E é a partir dessa amizade sincera entre eles que surgirá a série de peripécias do filme.

O grande problema na relação entre ambos é que o milionário só o reconhece e o trata como amigo quando está embriagado, o que, apesar de ser a sua condição a maior parte do tempo, não é uma boa ideia. Quando está sóbrio, ele age como se nunca tivesse visto o amigo antes, e essa é uma outra fonte de sorrisos para o espectador do filme. É impressionante notar a partir daí o grande talento e o timing cômico do diretor, que traz piadas simples e agradáveis para o contexto da trama, toda muito bem amarrada e pontuada por singelezas. Percebe-se o quanto Carlitos é desinteressado dos bens materiais do amigo, embora todos em volta pensem o contrário, especialmente quando o ricaço sofre de uma amnésia temporária e não se recorda dele mesmo estando sóbrio. E aí reside uma das maiores qualidades de Luzes da cidade: a sua mistura de simplicidade com riso e ternura melancólica, que o elevam ao patamar de obra de arte inenarrável, portadora de uma magia atemporal e de uma sensibilidade ímpar, pertencente apenas aos artistas veros.

Enquanto dura essa amizade em forma de gangorra, Carlitos segue em sua jornada de andarilho e conhece uma linda florista cega e pobre, de quem se compadece instantaneamente. O encanto do personagem por ela é totalmente compartilhável pelo espectador e colabora para revestir o filme de uma aura de emotividade um tanto atípica para uma comédia, mas que se encaixa perfeitamente à recriação da realidade proposta pelo diretor. Ela é a nova oportunidade que Carlitos tem de exercer a sua personalidade benfazeja: cônscio de que seu amigo é milionário e não tem o menor problema com dinheiro, ele decide ajudá-la como uma cirurgia que lhe devolverá a visão. Entretanto, não é tão simples conseguir colocar em prática o seu plano de salvação, por assim dizer, especialmente por conta daquele detalhe inconveniente que atravessa a sua amizade com o milionário. Enquanto isso, seguimos torcendo pelo rearranjo do estado das coisas, contagiados pelo otimismo subscrito a toda a narrativa do filme e desejosos de conhecer pessoas com tamanha bondade por aí.



Ainda há um outro detalhe que ajuda a engendrar uma pequena teia de engano: a florista confunde o Vagabundo com o tal milionário e ele, sem coragem (e vontade) de desfazer o equívoco, mantém a farsa, o que também demonstra sua incapacidade de querer decepcionar a jovem. Ele chega a ir à casa dela algumas vezes, sem sequer fazer menção de que não é quem ela pensa. E ali surgem mais cenas belíssimas, com o sincero carinho dele por ela e a doçura enternecedora da florista. E ainda existe o agravante de que a jovem e sua avó podem ser despejadas a qualquer momento do lugar onde moram por causa dos meses de atraso do aluguel. É então que Carlitos toma uma atitude e decide varrer as ruas para reunir os dividendos necessários ao pagamento da dívida, além de se envolver com o boxe, também na tentativa de ajudar a moça, já que seu amigo milionário não faz mais a menor ideia de quem seja ele. Tamanha é a vocação dele para a confusão, porém, que ele acaba indo preso, ficando impedido de ajudar aquela a quem tanto quer bem. A sorte da jovem é que ele consegue uma boa quantia do amigo quando ele ainda está bêbado e corre para entregá-la a ela, ao que se segue um período da sua ausência, que é justamente o período em que ele fica preso.

Contar mais a respeito de Luzes da cidade é estragar outras pequenas surpresas que se desdobram ao longo do filme, tão curto quanto pleno de acontecimentos e belezas singulares. Junto com Tempos modernos (Modern times, 1936) e Luzes da ribalta (Limelight, 1952), esse é um dos filmes mais elogiados do diretor, e esse apreço pela obra é totalmente justificável, por se tratar de um tesouro. O filme fala diretamente ao coração e enaltece virtudes que merecem ser constantemente lembradas e praticadas em meio à selva virulenta na qual nos encontramos hoje. Por mais que já se tenham passado oito décadas desde que o filme foi rodado, os valores que ele transmite, temperados com boas doses de pilhéria, permanecem urgentes e necessários. Muitos diretores famosos também aclamaram o longa deliberadamente, como Stanley Kubrick e Woody Allen, que chegaram a incluí-lo em suas listas particulares de filmes prediletos, o que só confere mais status a ele. Depois de assistir a Luzes da cidade, torna-se praticamente impossível não concordar com a predileção dos realizadores.

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