21 de mar. de 2012

Episódios sobre a fugacidade da vida ou Movimento em falso


Wim Wenders é daqueles cineastas que consegue sempre lançar olhares afetuosos sobre os personagens que retrata, transmitindo sua humanidade com talento e coerência. Com Movimento em falso (Falsche Bewegung, 1975), sucede exatamente isso, ainda que por vias um tanto tortuosas. O filme apresenta uma estrutura narrativa um tanto heterodoxa para seguir os passos de Wilhelm Meister (Rüdiger Vogler), um homem simples e que não demonstra muita convicção a respeito do que quer da vida. Um certo dia, sua mãe lhe compra uma passagem de trem para Bonn, e ele inicia um percurso longo e sem qualquer pressa rumo à cidade. O grande barato dessa viagem acaba sendo o seu percurso, e não tanto o seu destino final. É durante o tempo em que passa pelo trem e pelas ruas que o protagonista encontra personagens curiosos e cativantes que, em contraste com o seu caráter de poucas qualidades, demonstram virtudes, embora também pequenos defeitos.

A câmera registra a caminhada de Wilhelm com paciência, como quem verifica cada vestígio e cada pegada que ele vai deixando por onde passa, bem como os amigos ou conhecidos que vai colecionando em seu longo percurso. Com isso, Movimento em falso vai ganhando ares de instantâneos de uma realidade ordinária, em que os eventos simplesmente vão acontecendo, plenamente integrados ao cotidiano e sem qualquer pretensão de inventar a roda. O filme ganha o espectador aos poucos, ou não. Há quem possa se encantar pela jornada hesitante de Wilhelm e há quem possa ficar entendiado com ela. Wenders abre mão da ação contínua, e exige do público um certo estado de contemplação, que ele tornaria a reclamar em títulos subsequentes de sua filmografia, como O estado das coisas (Der Stand der Dinge, 1982) e Asas do desejo (Das Himmel über Berlin, 1987). Por isso, Movimento em falso não é um filme para grandes plateias, infelizmente. Não por um defeito do filme em si, mas do público que, em sua maioria, raramente acolhe obras de lentidão narrativa. Consequentemente, não apenas esse filme, mas outros de Wenders, acabam circunscritos ao seu rol de admiradores e entusiastas, que acolhem suas propostas de bom grado.

O grande desejo de Wilhelm, como ele revela logo no começo, em uma narração em off, é se tornar escritor. E, para ele, não se trata simplesmente de escrever ao acaso, mas de escrever porque quer e porque precisa disso. Entretanto, sua busca pelo ofício e sua solidão permanecem, fazendo dele um homem que flerta com a dificuldade e o fracasso o tempo todo. Em seu caminho, passam personagens curiosos com suas próprias histórias e segredos, e parece que cada um deles pode lhe ensinar algo, assim, naturalmente, sem qualquer didatismo. Mas, como há quem diga que, se conselho fosse bom seria vendido, nem sempre Wilhelm aplica aquilo que lhe recomendam, e também é colocado em contato com as profundas dissonâncias que frequentemente existem entre discurso e atitude. E, no fundo, ele deseja uma vocação que não possui, agindo como quem dá murro em ponta de faca na ânsia de fazer florescer o que sequer é semente dentro dele, e tornando o título do filme bastante justificado. A viagem para Bonn é o grande movimento em falso praticado pelo portagonista, é a sua tentativa sempre marcada pelas altas chances de falibilidade, um projeto frustrado de antemão. Ainda assim, ele exibe persistência e se recusa a acreditar que não seja capaz. E é exatamente esse traço de sua personalidade que o torna tão humano, tão parecido com tantas outras pessoas.



Em diversas passagens, Movimento em falso causa uma certa estranheza ao olhar. Wilhelm conversa com boa parte dos seus interlocutores caminhando pela estrada, e a câmera não os focaliza no estilo prototípico. Por vezes, os personagens ficam um tanto fora de quadro, com o andar do protagonista e a sua troca de interlocutor quando menos se espera, o que não deixa de ser uma centelha de inventividade de Wenders, ainda que isso possa incomodar parte da plateia. Mas, como se disse anteriormente, esse não é um filme que se preocupa em ser ortodoxo. É também um filme que transborda poesia, com seus personagens falando de seus sonhos, compartilhando com o protagonista suas pequenas aspirações, assim como seus pequenos acidentes de percurso. Esse é ainda o primeiro filme de Natassja Kinski, então uma adolescente de 13 anos, que dá vida a Mignon, uma artista de rua que se apresenta com seu avô, um atleta que participou dos Jogos Olímpicos de 1936 e conta suas experiências de veterano. Entre eles e Wilhelm, nasce um afeto um tanto atabalhoado, forjado pelas circunstâncias fortuitas em que se conhecem, e chegam a despertar a torcida do espectador para que a amizade se desenvolva. Com seus defeitos e qualidades, eles são exemplos de pessoas que podem passar pela nossa vida por pouco tempo e deixar boas lembranças.

O longa compõe uma trilogia de Wenders intitulada “On the road”, que se soma a No decurso do tempo (In Lauf der Zeit, 1976) e Alice nas cidades (Alice in den Städten, 1974). Todos eles têm em comum a presença de Vogler interpretanto o protagonista. A parceria entre ele e Wenders, aliás, foi bastante produtiva, o que fez dele o ator mais recorrente da filmografia do realizador. Com sua aparência comum, ele é uma ótima escolha para dar vida a um rapaz de grande ambição literária e gosto pela aventura, que coleciona história alheias por onde passa. E, curiosamente, a estrada não é o foco do filme, ainda que ele possa ser considerado um road movie. Aquela estranheza comentada anteriormente é o principal fator de oscilação dessa afirmativa e, no final das contas, importa muito mais o deslocamento que os personagens fazem pelo caminho do que o caminho em si. E todo o movimento empreendido por Wilhelm é a demonstração do transcorrer do tempo inscrito no corpo, do qual não se consegue escapar sem um esforço descomunal, tamanho é o nosso mergulho nele. Segue-se, assim, a constação de que estamos diante de episódios que reafirmam a fugacidade da vida e do tempo.

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