27 de dez. de 2011
Paranoia coletiva e realismo alarmante em Contágio
O filão dos filmes de catástrofe ganhou um novo exemplar através de Contágio (Contagion, 2011), recente trabalho de Steven Soderbergh. O diretor, sempre prolífico, decidiu apresentar ao público o seu olhar para uma temática cada vez mais atual: a paranoia coletiva, especificamente no âmbito da saúde. Para isso, ele parte de uma premissa recorrente em longas de ficção científica, que é a descoberta de um vírus letal que vem fazendo vítimas com rapidez assustadora. Ninguém sabe ao certo de onde vem aquele organismo com alta capacidade destrutiva, e a primeira vítima é feita com menos de 15 minutos de narrativa. Beth Emhoff (Gwyneth Paltrow) pensa estar sofrendo de jet lag quando fala ao telefone, ainda em viagem, com o marido Mitch (Matt Damon). Pouco depois, ela estará de volta para casa e apresentará estranhos sintomas, até que falece.
Ela é apenas a primeira de um numeroso catálogo de vítimas, que vai aparecendo uma após a outra, em um enredo eletrizante que começa por um fatídico “dia 2”. A morte de Beth dá a largada de uma epidemia de contornos alarmantes, que é capaz de deixar o espectador apreensivo na poltrona. Soderbergh tem por hábito dar uma leitura particular para temas e gêneros comuns no cinema, e é exatamente o que ele faz em Contágio. Ao mesmo tempo em que se vale de certos chavões dos filmes de ficção científica, ele exibe coragem para subverter certos códigos que se julgam imexíveis na gramática do gênero. O elenco é repleto de astros e estrelas, e o roteiro de Scott Z. Burns (de O desinformante [The informant, 2009], também dirigido por Soderbergh) não se furta de tirar a vida de personagens interpretados por atores famosos, como Paltrow. Há, inclusive, uma agoniante cena de necropsia com sua personagem, em que se vê, graças a uma ótima maquiagem, a retirada de seu escalpo.
Em meio ao desespero que toma conta de todos, a narrativa se multiplica em várias frentes, levando o público às altas esferas do governo e suas tentativas de solucionar o grave problema diante do qual se encontram. Ministros, médicos, governadores... todos têm uma tese para responder às perguntas que não querem calar. Assim, Contágio não apresenta exatamente um protagonista. Pelo menos, não um protagonistas humano. O vírus praticamente invisível é o personagem mais importante da história, e todos os humanos se tornam coadjuvantes diante do seu poder devastador. Qualquer um pode ser a próxima vítima. Todos estão vulneráveis e esse realismo contribui para que o roteiro se aproxime do palpável. As cenas que envolvem os aparatos para o enfrentamento do vírus, bem como os diálogos sobre seu desenvolvimento são fruto de uma criteriosa pesquisa com especialistas no assunto. Isso significa que, se estivéssemos realmente vivendo um caso de epidemia global, o cenário seria muito parecido com o que o filme apresenta.
Entre os nomes ilustres que figuram no elenco de Contágio, está Kate Winslet, no papel de uma médica austera que luta com unhas e dentes por uma resposta à agonia da população mundial. A atriz exibe a sua competência habitual, e é uma das tais coadjuvantes do filme, cuja presença é constantemente eclipsada por outros nomes, como o de Marion Cotillard, também na pele de uma profissional da saúde que também se engaja na luta contra o tempo por um antídoto àquele mal. Elas funcionam como peças de um grande jogo de tabuleiro que se estende por vários pontos do mundo e inclui cidades importantes como Hong Kong, Macau, Atlanta e Chicago. No Brasil, especificamente no Rio de Janeiro – até onde se sabe – a campanha de divulgação do filme foi maciça, e procurou dar conta de colocar o público no clima de alerta que o filme apresenta. O lema de que cada segundo é fundamental foi colocado no subtexto da campanha e de todo o filme e, diga-se de passagem, deu muito certo.
Matt Damon é outro ator importante do elenco, e o que mais se aproxima do posto de protagonista da trama. Como Mitch, ele é o único que, inexplicavelmente, permanece imune ao vírus, e enfrenta a barbárie em que o mundo se tornou. O ator vem de outras cinco colaborações com Soderbergh, que incluem títulos como Confissões de uma mente perigosa (Confessions of a dangerous mind, 2002), em que fez uma ponta. De certa forma, é possível traçar um rápido paralelo entre seu personagem em Contágio e a Mulher do Médico (Julianne Moore) de Ensaio sobre a cegueira (Blindness, 2008). Se ele é único a que o vírus não alcança, ela é a única que mantém a faculdade de enxergar. Não por acaso, ambos os filmes foram colocados em pé de igualdade por alguns espectadores e críticos, o que é uma meia verdade. Cada um deles apresente identidade própria, embora ambos apontem para cenários cataclísmicos.
No fundo, Contágio é mais um exercício de Soderbergh pela reinvenção de gêneros e perspectivas, como ele já fez tantas vezes – Full frontal (idem, 2002) é um outro exemplo. O roteiro é dotado de um estrutura algo didática, com a narrativa distribuída um tanto linearmente, começando pelo dia 2, passando por outros que são determinantes para o desenrolar dos fatos. O tal dia 1 é a grande incógnita, que não deixa de ser respondida, ainda que de modo um tanto óbvio a certa altura. Ainda há espaço para a discussão da força das mídias em sua potência disseminadora de informação, traduzida no personagem de Jude Law, estranhamente caracterizado e dotado de uma ferocidade que o faz impassível diante da vontade de manter todo a par de cada notícia que surge na comunidade científica. Ao fim da sessão, resta a noção de que Contágio é mais um trabalho convincente e competente de Soderbergh, que vai além do entretenimento e gera reflexão.
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Cinema
20 de dez. de 2011
Chagas profundas e difíceis de carregar apontadas em Submarino
Dolorido como poucos, Submarino (idem, 2010) assinala novamente a capacidade de Thomas Vinterberg de incomodar e impactar. Narrado com uma quase assepsia, o filme se foca nas dificuldades de relacionamento de dois irmãos com o mundo, bem como entre si mesmos. Nick (Jakob Cedergren) e Martin (Peter Plaugborg) foram profundamente marcados por um trauma na infância, envolvendo sua mãe e seu irmão mais novo, do qual nunca demonstram, na idade adulta, completa superação. Eles estão há muito tempo sem se ver, algo que fica claro depois que a narrativa do filme sai do curto flashback inicial e chega ao presente do enredo. Nick aparece desde o começo como um homem atormentado e arredio. Martin só retorna à cena com quase uma hora de filme.
Pautado pela lentidão, Vinterberg entregou mais um filme pungente, exibindo a mesma destreza na captura das discretas nuances que envolvem os seres humanos. A exemplo de sua faiscante estreia mais de uma década atrás, com o incisivo Festa de família (Festen, 1998), ele vislumbra o cotidiano de pessoas ligadas por laços sanguíneos e as derivações nem sempre tão benévolas desse tipo de relacionamento. Submarino é um trabalho denso, desprovido de boa parte da palatabilidade dos filmes comerciais que sempre têm espaço garantido no circuito exibidor, para dissabor de muito entusiastas de produções dessa estirpe. A situação piora quando se trata do cinema escandinavo, como é o caso do filme de Vinterberg, que foi exibido no Festival de Berlim de 2010 e chegou ao Brasil com um relativo atraso.
Na idade adulta de ambos os irmãos, o foco do longa, eles lidam com as limitações que a vida lhes impõe, cultivando comportamentos tantas vezes reprováveis. Nick flerta com a cafajestagem, fazendo de uma namorada um par descartável, ao passo que Martin trilha um caminho de vício em heroína, o que não o impede de se demonstrar um pai extremamente amoroso com o filho, embora, por seu problema, ele represente um grande perigo ao garoto. Como se pode perceber, a dupla de protagonistas caminha o tempo todo no fio da navalha, e angustia o público com suas escolhas errôneas e frustradas. Vinterberg espia um cotidiano dolorido, longe de qualquer floreio e edulcorante, como quem lança luz sobre as chagas de uma sociedade doente e aflita.
Um detalhe importante assinalado pela crítica é o amadurecimento do diretor no tratamento da temática que lhe é cara. Ele abandonou, ao longo da carreira, os preceitos do Dogma 95, e Submarino deixa isso muito claro, com sua estética mais límpida que a de Festa de família e a ausência dos tremores de câmera que entonteciam o público no seu primeiro filme. Não se trata, em princípio, de pontos negativos, mas, simplesmente de características que o diretor foi deixando de lado em prol de uma autorreinvenção em sua carreira. No fundo, são mostras de versatilidade no olhar para um assunto que é capaz de despertar comoção geral. Quando se trata de família, é possível afirmar que não há quem não tenha alguma sensação no peito e uma opinião formada. Aliás, esse é o calcanhar de Aquiles dos dois irmãos, que, em meio às dissonâncias que os circundam, ainda guardam afeição e carinho um pelo outro. Mesmo quando, em um instante de fúria vulcânica, Nick diga que só quer ajudar o sobrinho, salvando-o de Martin.
Distante de qualquer centelha de sentimentalismo, Submarino permanece na memória longamente, e se filia a outro exemplar bem-sucedido de filme sobre dor e sofrimento interiorizados: Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010). Assim como o filme de John Cameron Mitchell, o trabalho do dinamarquês é escavar o processo diário de lida com a realidade cruel que se impõe a protagonistas cuja desorientação é a própria bússola, com todo o oximoro que a observação carrega. Em Submarino, são raras as cenas pontuadas por uma trilha sonora, o que acaba por amplificar a sensação de nó na garganta que atravessa o espectador do filme. Vinterberg matiza discretamente o luto perene de Nick e Martin com uma luz esbranquiçada que, de longe, faz remeter a Ensaio sobre a cegueira (Blindness, 2008), que, obviamente, valeu-se do recurso de modo distinto, enquanto o objeto de análise deste texto segue por outra via com igual eficiência.
Por sua capacidade de enfrentar um dia a dia tão incômodo, o filme pode ser acusado de pessimista, mas há que se atentar para o seu subtexto não tem desacreditado quanto as aparências levam a concluir. Em verdade, Submarino exibe protagonistas com uma mescla de fúria, ternura e carência. Nick, por exemplo, é capaz de cometer um ato extremo para proteger um grande amigo de infância com quem retoma contato depois de tantos anos. E de sofrer terrivelmente por um novo evento chocante em sua idade adulta, sobre o qual afirma não ser plenamente capaz de suportar. Essa dualidade tão possível de habitar o coração dos homens assevera que o filme adota o realismo como sua rosa dos ventos, e resulta em uma tradução dolorida da dor e das pequenas e sutis alegrias que permeiam a vida de qualquer pessoa. Como qualquer outro filme, Submarino é um recorte e uma reinterpretação da vida. E a maneira com a qual Vinterberg a faz é verdadeiramente devastadora.
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Cinema
14 de dez. de 2011
Humor ferino e neuroses atemporais flagradas em Dorminhoco
Em sua fase setentista, Woody Allen era dado a certas estripulias, não apenas de roteiro, mas também físicas. Isso explica a profusão de piadas que se compõem de referências corpóreas notada nos seus filmes dessa época, como é o caso de Dorminhoco (Sleeper, 1973). A comédia oferece uma leitura hilariante para o futuro, mas precisamente o século XXII, época na qual Miles Monroe (Allen) desperta depois de 200 anos de sono provocado pela criogenia. Tudo no mundo está muito diferente de quando ele dormira, e sua reação diante das mudanças sucedidas ao longo de tanto tempo é de espanto, naturalmente. E seu retorno ao convívio social se dá por causa de uma manobra de uma equipe médica que necessita de alguém sem registro, como ele, para uma reação em massa contra um governo totalitário. Está iniciada a série de peripécias que vai permear esse que é o quarto filme de uma longa e notável carreira.
Desde o início, fica evidente que Dorminhoco flerta com o melhor da tradição do cinema mudo, em especial aquele praticado por Charles Chaplin, figura de proa de um subgênero que viu seu prestígio naufragar com o advento do som nessa arte. É quase inevitável não se remeter ao grande Carlitos ao ver Miles correndo de um lado para o outro, quase sempre em fuga e tentando entender o que se tornou o mundo enquanto ele dormia profundamente. Nesse aspecto, pode-se perceber que os questionamentos basais da obra alleniana já estavam presentes aqui, mesmo que de forma embrionária. Miles é o arquétipo do sujeito deslocado, que se angustia pela ausência da sensação de pertencimento ao local em que se encontra. Dessa sensação, decorre todo tipo de neurose e de vagotonia, que o leva a caminhos e situações improváveis, como a condição temporária de robô doméstico de Luna (Diane Keaton, em sua primeira parceria com o diretor), uma poetisa inconsciente de sua falta de talento.
Torna-se cada vez mais interessante acompanhar os desdobramentos de uma trama que prima pelo riso frouxo, ainda demonstradora da associação do diretor com sua atuação no stand up comedy, estilo de humor no qual ele foi, sem dúvida, pioneiro. O futuro imaginado por Allen difere bastante daquele pensado por Stanley Kubrick, por exemplo, que partiu de uma obra literária para construir Laranja mecânica (Clockwork orange, 1971) apenas 2 anos antes, e fez da visão de um escritor a sua. O nova-iorquino decidiu caprichar na arquitetura cômica e entregou um dos retratos mais bem-humorados do porvir, do qual ninguém tem a menos certeza. E, de quebra, ainda refletiu sobre as mazelas de cada um de nós com relativo talento. É factual a observação de que ele ainda melhoraria muito na condução de suas tramas, mas há que se admitir que a argamassa com a qual ele ergue anualmente sua obra monumental já vinha sendo empregada aqui, bem como a presença de seu alter ego cinematográfico, por vezes interpretado por outros atores, com maior ou menor eficiência.
Ainda pensando na correlação possível entre Allen e Kubrick neste Dorminhoco, segue uma curiosidade interessantíssima por trás do filme: há um computador malvado presente na história, cuja voz foi feita por Douglas Rain, o que se tornou uma sátira a 2001 – Uma odisseia no espaço (A space odissey, 1968), pois foi esse mesmo ator que deu voz ao legendário HAL 9000. Especificamente no cotejo com esses dois filmes, o de Allen vai totalmente na contramão, elegendo as gags visuais e o festival de piadas para destilar sua visão contrária a regimes ditatoriais que geram um culto indefensável ao isomorfismo humano. Cabe comentar também o encontro feliz do diretor e ator com Keaton, que viria a se tornar sua musa em uma série de filmes posteriores, e que culminaria com um romance fora das telas. Sem sombra de dúvida, o ápice dessa parceria está em Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), que viria a se tornar uma espécie de abecedário das relações amorosas, uma fonte de que muitas comédias românticas beberiam. No caso de Dorminhoco, ela apresenta franca beleza com Luna, característica que, machistamente falando, compensa sua inabilidade com as palavras, que ela jura ter.
Por vários momentos, este é um filme completamente de sua época, que investe em situações com contornos bizarros e expressam o pensamento de um época com relação a outra. Está patente que aquela é a visão de futuro de alguém que ainda vive na década de 70, e que, quando projetamos nosso pensamento para tempos anteriores ou posteriores ao nosso, a tendência sempre é a de enxergá-los com o olhar que temos no presente. Quem imaginaria o ano de 2173 como Allen hoje em dia? De qualquer modo, essa é a questão que menos importa no filme, que não está necessariamente entre as grandes obras do diretor, mas tem sua importância pela capacidade de reflexão que oferece, e pela deixa para boas risadas que apresenta ao longo de seus 87 minutos de duração. Trata-se de um filme leve, mas também com um quê de mordácia, que o livra do vale da banalidade pura e simples e contagia o espectador em diversos momentos. Allen é um exímio contador de histórias e um grande comediante, e essa sua faceta, ainda que, por vezes, dilua-se em seus filmes, é a grande tônica de toda a sua produção cinematográfica.
Dorminhoco, portanto, merece um lugar em qualquer lista de grandes comédias, por sua capacidade de diálogo com obras de seu tempo e pela prevalência de um discurso afiado que se complementa com uma sucessão de cenas verdadeiramente hilárias. Estão presentes ainda algumas referências à própria vida pessoal do cineasta, como a sua faceta de músico. Como muitos sabem, ele tem uma banda de jazz e toca clarineta semanalmente em Nova York há muitos anos, e o fato é citado através de Miles, que também toca o instrumento musical, embora nunca apareça fazendo, já que esse é um traço do outrora do personagem. Como curiosidade final, está a que envolve a veracidade das teorias científicas que aparecem na história: elas foram atestadas depois que o diretor as apresentou a Isaac Asimov em um almoço. Portanto, Allen não jogou conversa fora, e traduziu, em meio a angústias sintomáticas de um homem sem lugar, a loucura de cada um de nós, delineada aqui pelas imbricações com canhestros aparatos tecnológicos.
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Cinema
7 de dez. de 2011
Super 8, uma nostálgica crônica infanto-juvenil
Conhecido por séries televisivas nas quais injetou fôlego ou ternura (Alias e Felicity, respectivamente), J. J. Abrams também gosta de enveredar pelo cinema. Sua mais recente estripulia é o ótimo Super 8 (idem, 2011), um filme feito à moda antiga, com gosto de infância. Mesmo os clichês que atravessam a narrativa são temperados da melhor maneira possível, resultando em um entretenimento de primeira e comprovando que o cinema também deve ter espaço para histórias fantásticas. Muito se comentou sobre a semelhança do filme com obras oitentistas de Steven Spielberg, de quem Abrams pode ser considerado um discípulo confesso. Entretanto, as pontes possíveis entre o filme em análise e algumas produções do diretor de E.T. – O extraterrestre (E.T., The extra-terrestrial, 1982), uma das referências mais óbvias, vêm sob a forma de diálogo e tributo, evocando uma geração aventureira e com muita coragem e disposição para ultrapassar limites.
Os protagonistas são pré-adolescentes que, justamente por estarem vivendo essa fase tão limítrofe, ainda não se deram conta do que realmente desejam, bem como do que os espera pelos próximos anos. Em comum, eles também têm a paixão pelo cinema e pelas descobertas, o que os leva a decidir rodar um filme amador com a câmera que dá título ao longa de Abrams. Assim, Joe (Joel Courtney), Martin (Gabriel Basso), Charles (Riley Griffiths), Cary (Ryan Lee) e Alice (Elle Fanning) enveredam por caminhos um tanto inesperados. Em uma das filmagens que realizam, eles acabam registrando um estranho acidente que gera consequências ainda mais esquisitas. Daí em diante, a inserção do elemento sobrenatural na trama se torna irreversível, e guiará toda a ação do filme. Tudo porque uma criatura assustadora é liberta, e os amigos têm de lutar contra ela a fim de salvarem as próprias peles e toda a cidade em que moram. Como se pode perceber, Super 8 é um típico filme-pipoca, que não nega nem obscurece sua condição, e se revela bastante divertido exatamente por isso.
Em meio à corrida frenética que se instaura no cotidiano dos jovens amigos, o longa ainda tem espaço para apresentar os dilemas familiares vividos por eles, especialmente o que envolve Joe, completamente devastado pela perda de sua mãe, mostrada logo no começo da história. Ele encontra na paixão pelo cinema um refúgio para seus problemas, tal qual seus amigos. Todos, aliás, têm um motivo concreto para rodar o tal filme caseiro: um concurso para jovens cineastas que concederá um interessante prêmio ao vencedor. As filmagens, porém, logo cedem lugar para uma incrível aventura e uma delicado jogo de desencontros do coração, já que Alice desperta a paixonite de dois dos amigos, gerando uma disputa ora velada, ora explícita, entre eles. Quem já viveu esses momentos de amor juvenil entenderá perfeitamente a dimensão magna que eles ganham para os personagens, cujos corações pulsam com uma ânsia esquisita, que só entende quem ama ou quem amou. E o melhor é que a junção dos ares de suspense com drama doméstico não soa como uma miscelânea desastrada na história, demonstrando que Abrams tem talento em seu modus operandi, já que também responde pelo roteiro.
Outra referência declarada de Super 8 é a Contatos imediatos de terceiro grau (Close encouters of the third king, 1977), também dirigido por Spielberg. O filme narra as alterações no comportamento de um pai de família depois de pressentir a chegada de alienígenas. As semelhanças com o filme recente, portanto, não são gratuitas. Ademais, vários outros longas que versam sobre crianças aventureiras são citados indiretamente aqui, como Os goonies (The goonies, 1985), facilmente alcunhado como ícone de uma geração. Que fique claro, contudo, que Super 8 apresenta identidade própria, até mesmo pelo fato de estar situado em uma dimensão temporal distinta dos filmes com os quais dialoga. O fato de os personagens usarem o modelo antigo de câmera é o único índice concreto de anacronismo da trama, já que os garotos estão claramente inseridos em um mundo cibernético, de relações mediadas via teclado. A criatura aterradora que as persegue também admite uma leitura metafórica, soando como a quintessência dos medos irracionais que podem assolar esses seres humanos ainda em formação.
Para olhares mais atentos, há até mesmo rápidas referências ao mestre dos filmes de zumbi, George Romero, como o cartaz de um dos trabalhos do diretor. Com isso, assistir a Super 8 é também ficar de olho em várias menções que passeiam pela trama, e sentir novamente um doce sabor de fim de infância, do tradicional adeus à inocência por que todos, invariavelmente, passam. Cumpre assinalar os desempenhos de gente grande (aqui vai um lugar comum) do elenco juvenil, em especial o de Elle Faning, que já vinha dando provas de traquejo em seus filmes pregressos, dos quais Um lugar qualquer (Somewhere, 2010) é a maior prova. A garota vive uma espécie de musa do grupo de amigos, que responde pelo racha na harmonia ente dois deles, até que um novo equilíbrio é delineado. Aqui, não se está diante de um filme inesquecível, mas a habilidade de Abrams em contar sua história, bem como a empolgação transparecida pelo elenco, garantem diversão, alguns sustos e um leve sorriso com o curta produzido pelos amigos, exibido durante os créditos finais. Vale esperar por eles.
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Cinema
1 de dez. de 2011
O lutador e a busca pela reconciliação com a existência
Apontado como a grande redenção da carreira de Mickey Rourke, O lutador (The wrestler, 2008) é também um grande achado na carreira de Darren Aronofsky, o diretor por trás da obra. Sua narrativa tem como personagem principal Randy “Ram” Robinson (Rourke), um lutador profissional que vive sua aposentadoria aos sobressaltos, passando seus dias como quem está à deriva. Sua rotina é deplorável, e seu passado de glórias, em vez de lhe trazer alegria e satisfação, pesa como um terrível tormento. Ele está sozinho, e essa triste constatação dói em seu peito, ainda que suas demonstrações de força e autossuficiência digam o contrário. No fundo, o que ele quer é voltar à ativa, já que nunca se desvencilhou totalmente das lutas, conservando a tendência para se meter em confusões de qualquer tipo ainda competindo no circuito independente. Até que sua sorte parece mudar: ele fica sabendo que um de seus antigos rivais está chamando ao desafio. Incapaz de resistir, ele empreenderá um enorme esforço para enfrentar o famoso Aiatolá.
Partindo dessa premissa intensa, Aronofsky nos traz mais um de seus personagens obcecados pela perfeição e pela autossuperação, fato que os leva a entrar em projetos camicases que responderão por suas glórias e por suas ruínas, às vezes, simultaneamente. Essa tendência é sintomática no cinema do diretor, e pode ser destacada como o seu tema-fetiche, por assim dizer. Interessa e ele espiar como se processa o triunfo da vontade sobre as circunstâncias adversas que se interpolam entre um indivíduo e seu caminho. A despeito de uma série de contrariedades, como um infarto recente, Randy nunca para de lutar. E sua disposição é tanto para a luta em seu sentido literal quanto metafórico, uma vez que vários dos seus problemas são vistos por ele como inimigos a serem abatidos. Somado ao seu desejo de voltar aos ringues, está a sua necessidade de reconciliação com a filha Stephanie (Evan Rachel Wood), com quem não mantém contato há anos, e sua paixão desastrada por Cassidy (Marisa Tomei), uma stripper com quem compartilha uma estranha e oportuna identificação.
O protagonista caminha entre esses três eixos ao longo da duração de O lutador, e oferece um denso estudo sobre a importância de se criar laços, inerente a qualquer ser humano. Muitas vezes, Randy e seu destino colidem, mas ele não demonstra perder a fé em si mesmo e na vida, ainda que essa demonstração venha por meio de decisões e métodos que não aparentam ser os mais ortodoxos. Aronofsky ganha pontos com o público por se valer de uma abordagem que soa sempre sincera, com personagens que não se furtam de apresentar as suas mazelas, e que, ainda que não acertem o tempo todo, procuram avançar em seus caminhos. O protagonista tem um percurso longo e difícil diante de si, mas sua veia de competidor impede seu esmorecimento. Da mesma forma, seu intérprete, Mickey Rourke, exibe uma sede de atuação como poucas vezes se viu recentemente. É sabido que o ator vinha de um longo hiato na participação de filmes, ao qual se antecederam alguns fiascos, como o tosco Orquídea selvagem (Wild orchid, 1990), em que o ator ainda exibia uma beleza admirável em meio a um roteiro primário e constrangedor.
Diante dessa vontade férrea observável em Rourke e em Robinson, há que se recorrer ao velho chavão de que “A arte imita a vida”, pois o que se verifica em O lutador é um notável efeito especular entre as carreiras do personagem e do ator. Depois de anos dedicados à luta na vida real, o intérprete perdeu boa parte de seu viço, o que leva a atenção para seu desempenho, e não tanto para sua estampa. E, nesse quesito, ele mostra que pode ser exemplar, arrastando para si todo o filme, e promovendo inesquecíveis cenas com a personagem de Marisa Tomei, outra que arrebenta em seu papel. Tanto como Randy, Cassidy foi aprovada com louvor na escola do abandono (uma metáfora muito eficiente aqui reeditada), e entende, inclusive com o olhar, as feridas que o lutador carrega em seu peito parrudo. Eles são, de uma maneira muito desengonçada, como almas gêmeas, que se amam tumultuadamente, que se reclamam com seus corpos e seus corações apaixonados. Stephanie, por sua vez, é o sopro de paternidade que bate no rosto vincado de Randy, que se esmera em tentativas de aproximação que, por muitas vezes, são repelidas por ela. Note-se bem o trabalho bem feito de Evan Rachel Wood, que viria a chamar a atenção de Woody Allen e trabalhar com ele no ótimo Tudo pode dar certo (Weathever works, 2009).
Alegando diferenças criativas (lugar comum recorrente entre os atores), Nicolas Cage, inicialmente escalado para o papel principal, deixou o projeto. Vendo-se Mickey Rourke e seus potentes rugidos de fúria e afinco na tela, torna-se quase impossível pensar e outro ator para o personagem, e o espectador pode produzir gritos de júbilo pelo contentamento com sua escalação para o filme. Pontos a menos para Cage, que seguiu seu marasmo de escolhas equivocadas, que incluem bombas como Perigo em Bangkok (Bangkok dangerous, 2008) e Presságio (Knowing, 2008). Assim como Rourke, Tomei e Rachel Wood demonstram um ótimo encaixe aos seus papéis, e reafirmam Aronofsky como um grande diretor de atores, que sabe decalcar de seus intérpretes preciosos desempenhos. Não foi de espantar, portanto, a indicação de Rourke na categoria de melhor ator, cuja vitória acabou sendo de Sean Penn, que concorria por Milk – A voz da igualdade (Milk, 2008).
Caberia também uma indicação para o diretor, que acabou não vindo. Independentemente desses detalhes, porém, O lutador é um filme que faz bem aos olhos e aos ouvidos, como uma trilha sonora marcante, cuja assinatura cabe a Clint Mansell, parceiro do cineasta em outros filmes, como Fonte da vida (The fountain, 2006) e Cisne negro (Black swan, 2010). Seu orçamento foi frugal diante dos investimentos nímios de outras produções que saem dos altos-fornos hollywoodianos: apenas 7 milhões de dólares. O tempo de filmagem também foi recorde: somente 35 dias. Eis duas provas cabais de que enxutez de grana e economia narrativa podem significar um brinde ao público com uma história cheia de sentimento, emoção e, por conseguinte, coração.
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