2 de ago. de 2010
"Na cama": o enredamento pelas palavras
Por meio de um longo diálogo, Matías Bize convida seu espectador a estar "Na cama". O longa do diretor chileno tem um título absolutamente convidativo, mas engana aos que pensam se tratar de uma obra de sexo vulgarizante. Para começar, as cenas ousadas são muito menos abundantes do que se pode supor, em se tratando de um filme assim intitulado. Logo na abertura, a câmera flagra um casal em pleno ato, focalizando nas carícias atrevidas e nos sutis gemidos de prazer. Com o passar de alguns minutos, o homem e a mulher que começaram a ser expostos diante do olhar do público têm a chance de começar a se mostrar por dentro.
É então que o filme se revela um vigoroso tratado das relações amorosas da contemporaneidade, cumprindo muito mais uma função reflexiva que excitante, malgrado a carga erótica que percorre cada fotograma de seus enxutos 80 minutos. A ação de "Na cama" trancorre totalmente em um único cenário: um quarto de motel onde seus protagonistas, e únicos personagens, fazem sexo e conversam, conversam e conversam. Seus nomes são ditos somente algum tempo depois do começo da trama. Eles se chamam Daniela (Blanca Lewin) e Bruno (Gonzalo Valenzuela), e não se sab muito bem de onde eles vêm ou para onde vão. A única certeza que transparece na conversa entre os dois é a de que aquela está sendo a primeira e a última noite deles. E, como não poderia deixar de ser, o teor do diálogo é, também, sobre como seria um possível relacionamento dos dois.
Nada é tão explicativo no que se refere ao casal. Aos poucos, o roteiro muito bem escrito de Julio Rojas deixa entrever que Bruno e Daniela se encontraram em uma noitada, e estão naquele motel para praticar sexo casual. Como mais um entre tantos casais, eles não estão à procura de compromisso sério, mas acabam esbarrando na possibilidade de viver algo mais que uma única noite. Nesse sentido, Bize acertou, pois apostou em uma composição minimalista, em que os diálogos são um rio caudaloso que dá contornos impressionantes aos sentimentos vertidos por seus personagens. Muito mais do que despi-los por fora, o cineasta os apresenta por dentro, com suas almas expostas, apesar de muitas reservas no início.
Naquele ambiente tão impessoal, Daniela e Bruno conversam, se beijam, se excitam, dançam, comem e bebem, e vão enredando o espectador para um espiral de desejo e incongruências conduzida com muita habilidade. Para espectadores menos afeitos a um blá blá blá, a experiência de assistir a "Na cama" também é válida, pois o texto proferido por seus personagens é de arrasar, não caindo em momento algum na vala do cansativo. De alguma maneira, eles resumem a essência da vaidade que acomete os indivíduos nos dias de hoje, ensoberbecidos de tal forma que amam muito mais sua independência e seu desapego a uma outra pessoa do que prezam a companhia perene do outro. Num mundo em que as relações se mostram cada vez mais voláteis, acompanhar a curta trajetória de envolvimento e posterior desenlace de Bruno e Daniela é se colocar diante de um espelho - côncavo ou convexo, a depender da distância a que se está do alvo.
O diretor Matías Bize despontou com "Na cama" no Festival do Rio de 2006, e conquistou muitos espectadores com sua verborragia. Durante o tempo que passam juntos, os personagens praticam o sexo verbal, muito mais do que qualquer outra modalidade de sexo. Com isso, o filme de Bize se assemelha aos de outros diretores que também decidiram calcar suas obras nas palavras. Um deles é Richard Linklater, que compôs dois singelos retratos do amor dos tempos atuais: "Antes do amanhecer" (1996) e "Antes do pôr-do-sol" (2004), em que os diálogos são a força motriz da ação. Uma ação quase inexistente, na verdade. Assim também acontece com o cinema de Eric Rohmer, que fez várias séries de filmes em que quase nada acontece, mas as falas dos personagens desenrolam uma infinidade de sentimentos e anseios. A quadrilogia dos contos das quatro estações é um magnífico exemplo desse cinema dialogal. O longa posterior de Bize, "O bom de chorar" (2007), jamais viu o escurinho das salas de cinema brasileiras, tendo sido exibido também no Festival do Rio. Nesse longa, em vez de um casal que ensaia o começo de um relacionamento, está um casal em vias de se separar, discutindo a relação numa caminhada noturna pelas ruas de Barcelona.
A estrutura de "Na cama" também acabou rendendo uma obra "genérica", filmada aqui no Brasil. Seu nome, inclusive, é muito semelhante ao do longa chileno: "Entre lençóis". Seus protagonistas, rostos conhecidos das novelas globais: Reynaldo Gianecchini e Paola Oliveira. Confesso que ainda não assisti a ele, em grande parte por um receio enorme de que não passe de um cópia piorada do longa "original". Por outro lado, é interessante notar que "Na cama" acabou fazendo escola por aqui. Há muitas qualidades, como já foi dito, que engrandecem o filme. Particularmente, não sou de acordo com o sexo eventual, como o praticado pelos personagens, e me prendo muito mais nos interessantes diálogos travados por Daniela e Bruno, que trazem muito de angústia existencial. Incapazes de lidar sequer consigo mesmos, eles tentam estabelecer uma conexão com o parceiro, na busca por uma sensação de completude que não se realiza nem mesmo depois de longos anos na companhia de outrem. No fim das contas, "Na cama" se revela como um longa sobre o abismo invisível que reina em qualquer relação humana.
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