O veterano Alain Resnais tem lugar cativo no imaginário cinéfilo há muito tempo, desde que dirigiu os estimados Hiroshima, meu amor (1959) e, posteriormente, Ano passado em Marienbad (1961). Com essa obras icônicas, o realizador francês pavimentou sua carreira, sendo o único entre os que praticam o chamado "cinema de autor" a não escrever os seus próprios roteiros. Seus 55 anos de estrada constituem um mosaico amplo a respeito da fragilidade humana, somado à angústia pela passagem do tempo e ao baú de recordações de que é formada a memória. E essa espécie de perseguição ao tipos humanos em sua incursões pelas entrelinhas do próprio pensamento mais uma vez é a tônica de um trabalho seu. Especificamente "Ervas daninhas" (2008), exibido no Festival de Cannes de 2009.
Trata-se de mais uma formidável caminhada pelo terreno fértil da inquietude dos homens por conta daquilo que não são capazes de dominar: a reação do outro às suas palavras, o peso de suas escolhas frustradas, além da inserção do absurdo no cotidiano. Tudo isso auxiliado por uma fotografia primorosa, marcada pelas tonalidades berrantes que, em primeira instância, denunciam a artificialidade das relações humanas na contemporaneidade. Em tempos de politicamente correto, Resnais se atreve a questionar os protocolos estabelecidos entre os indivíduos, quando precisam entrar em contato uns com os outros.
O estopim para essa discussão é o desaparecimento da bolsa de uma dentista, Marguerite (Sabine Azéma), que continha todo os seus documentos, fruto de um roubo quando ela está saindo de uma loja. Logo na abertura do filme, durante a exibição dos créditos iniciais - é sempre bom quando o filme apresenta créditos iniciais -, o espectador percebe que Marguerite é uma personagem algo inusitada. Com a ajuda de um narrador onisciente, vai-se descobrindo um pouco de sua personalidade anticonvencional, que se traduz, entre outras coisas, em uma certa compulsão pela compra de sapatos. Seus visual também traz elementos interessantes, do ponto de vista do fora do comum, já que ela adota cabelos ondulados, ruivos e desgrenhados.
Sua trajetória se cruza com a de um homem e sua vida absolutamente banal: Georges (André Dussolier), casado e pai de dois filhos já adultos, que desenvolve uma estranha obsessão por Marguerite. Aos poucos, Resnais vai alinhavando a estrutura de seu filme para conjugar o bom roteiro de Alex Reval e Laurent Herbiet, uma adaptação do romance de Christian Gailly, à atuação precisa e sem retoques de Azéma e Dussolier. Aliás, Azéma é uma habitual colaboradora do cineasta, tendo estado presente em filmes como "Amores parisienses" (1997), "Beijo na boca, não! (2003) e "Medos privados em lugares públicos" (2006). Nesse último, o realizador já dava indícios de que pretendia trabalhar a questão da dificuldade de relacionamento entre as pessoas, também se utilizando das cores estouradas.
Portanto, em "Ervas daninhas" essa preocupação, por assim dizer, ganha terreno mais uma vez, sendo o humor negro um grande aliado dos personagens. De uma maneira ou de outra, todos parecem estar perdidos nas escolhas que fazem, sem ter muita certeza daquilo que estão fazendo. Em meio a esse cenário de inusitado, surge um personagem enigmático como o de Mathieu Amalric, um dos atores mais assíduos do cinema francês contemporâneo, ao lado de Daniel Auteuil. É com ele uma das melhores cenas de todo o filme, quando Marguerite vai até a delegacia onde seu personagem trabalha, a fim de reaver a sua bolsa roubada, que lá é entregue por Georges. Uma vez presente no local, Marguerite desenvolve um diálogo inacreditável com o policial, que tem atitudes muito anticonvencionais em sua abordagem à cidadã.
O grande achado do longa é exatamente esse: lidar com o óbvio e o bizarro que permeiam as relações humanas o tempo todo. Resnais fabula sobre as nossas manias, esquisitices e da grande incomunicabilidade que paira, latente, sobre tudo o que tentamos dizer aos outros, com palavras, gestos, olhares e atitudes. No título original, as ervas são loucas, e não daninhas. Porém, de uma forma ou de outra, elas parecem traduzir a mesma ideia: para o ser humano, um simples acontecimento pode ser o bastante para desenvolver nele um pensamento corrosivo, que o leva a cometer extravagâncias em nome desse pensamento. Uma obsessão que não soa distante de uma realidade compartilhada por ser feita sob a costura perfeita de um mestre naquilo que se propõe a fazer. Resnais não está, nem de longe, preocupado em explicar a vida, mas em enternecer nossos corações com seu mergulho no que há de mais íngreme na ladeira de loucuras de que somos feitos. E, quando a vemos resplandecendo nos outros, no fundo, sentimo-nos menos sozinhos, ainda que a nossa loucura seja sempre diferente.
19 de ago. de 2010
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