Desde que dirigiu "As horas" (2002), Stephen Daldry devia um novo filme aos seus espectadores. Afinal, tanto seu longa precedente quanto sua primeira produção (para quem não sabe ou não se lembra, "Billy Elliot", de 2000) foram muito bem recebidos pela crítica e pelo público sedento de reflexão e de boas histórias. Não foi à toa que Daldry recebeu indicações ao Oscar de melhor diretor por suas duas experiências atrás das câmeras. Passados seis anos desde a narrativa tríptica embasada na obra de Virginia Woolf, ele traz "O leitor" (The reader), mais um filme contundente e revelador, que trata do peso das escolhas, principalmente quando a principal dessas escolhas é a completa omissão diante de um fato lastimável. É uma adaptação do romance homônimo de Bernhard Schlink, feita pelo roteirista David Hare, também responsável pelo roteiro de "As horas".
Tudo começa com uma tarde chuvosa, bem ao estilo londrino, na década de 30. Michael (nessa fase, vivido por David Kross) está voltando para casa depois de mais um dia estudos, quando conhece Hanna Schmitz (Kate Winslet, mais uma vez irrepreensível), uma mulher rude e, ao mesmo tempo, encantadora para aquele jovem. Nesse primeiro momento, o filme se mostra como a crônica do nascimento do amor de um rapaz por uma mulher alguns anos mais velha que ele, um lugar-comum que pode levar os mais desavisados e precipitados a classificar "O leitor" como mais um filme de amor. Ideia errada. O romance de Michael e Hanna não envereda para um contexto idílico, que remeta aos contos de fadas.
Ela trabalha fiscalizando bilhetes de trem. É taciturna e, quando decide falar, não é das figuras mais simpáticas. É como se sempre quisesse se esconder sob uma carapaç que a isola do mundo em certa medida, permitindo apenas o contato estritamente necessário. Depois de conhecer Michael, sua vida monótona parece ganhar uma paleta de cores mais vasta, principalmente quando ele começa a ler obras da literatura universal para ela. Os dois passam a se encontrar para passar longas tardes juntos, enquanto Michael recita trechos imensos de textos clássicos e Hanna mergulha nas histórias que ouve. Há um segredo mantido a sete chaves por ela, mas do qual o espectador não tarda a desconfiar: Hanna é analfabeta. Quando a relação entre eles começa a ganhar contornos mais sérios, ela passa a caminhar na direção oposta, repelindo a presença do jovem.
Durante essa fase do filme, não faltam cenas ousadas entre os protagonistas, consideradas gratuitas por alguns, mas que se mostram por inteiro em sua nudez, e revelam a beleza de seu intérpretes. Winslet é daquelas atrizes que, para além de sua estampa ofuscante, oferece atuações brilhantes e soberbas, que fazem o público grudar os olhos nela, e não mais tirá-los. A Academia parece já saber disso há um tempo, mas só decidiu premiá-la depois da sexta indicação, exatamente por "O leitor". Antes, ela já havia sido indicada por "Razão e sensibilidade" (1995), "Titanic" (1997), "Iris" (2002), "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" (2004) e "Pecados íntimos" (2006). Todas as indicações foram dignas, e sua vitória por "O leitor" é um reconhecimento tardio dos votantes. Felizmente, porém, ele aconteceu. Ela também levou o Globo de Ouro pelo papel. Por sua vez, Kross é um jovem ator que já vem demonstrando seu talento há algum tempo. Ele já esteve no elenco de um mesmo filme que Winslet antes, o já citado "Briho eterno de uma mente sem lembranças". Assim como ela, é de uma beleza que chama a atenção, e consegue transmitir a insegurança e a efusão de um garoto que descobriu o primeiro amor. Seus olhos refletem esse misto de sentimentos com habilidade notável. Com o fim de seu romance com Hanna, esses mesmos olhos se transfiguram em desalento.
O tempo transcorre, e Michael e Hanna permanecem separados, mas a lembrança dela atravessa os pensamentos dele. Adulto, Michael passa a ser vivido por Ralph Fiennes, também numa construção impecável como ator. Até que, um dia, eles se reecontram em uma situação extremamente desagradável: o julgamento de crimes de guerra em um tribunal. Hanna é uma das acusadas de colaborar com o regime nazista, favorecendo o extermínio de milhares de judeus nos campos de concentração. Diante da atestação dessa barbárie, Michael se vê ainda mais confrontado por seu passado com Hanna, no tempo em que ele era ainda um menino em busca de todo tipo de descoberta. Agora ele é um advogado de prestígio, e sabe do segredo de Hanna, podendo ajudá-la a se livrar da condenação. Ela mesma prefere omitir o fato, por se envergonhar de não saber ler. Mas Michael prefere se calar, e não agir em favor da mulher que um dia amou.
Esse é o eixo central de "O leitor". O filme se foca nesse dilema moral no qual Michel se encontra, e levanta o questinamento sobre a parcela de responsabilidade que podemos ter no destino de outrem. Quando decidimos guardar a verdade apenas para nós mesmos, podemos estar fazendo a escolha mais errada de nossas vidas. Daldry vem se tornando um especialista em retratar pessoas vivendo uma vida que não é a que desejam. Como o personagem-título de "Billy Elliot" e as mulheres de "As horas", Michael não tem a vida que que quer, e isso implica em carregar consigo sempre uma fagulha que seja de insatisfação e desventura. A filmografia do diretor, composta, até agora desses três longas, é, portanto, um tratado dos erros de cada um e do sufocamento que a aparente falta de saída gera naqueles que não se reconhecem mais em si mesmos.
24 de jun. de 2010
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