8 de jun. de 2010

"Abraços partidos" e o cinema dentro do cinema

Quando se fala a respeito de Pedro Almodóvar, uma série de conceitos a ele atrelados ganha força. O diretor é conhecido por suas abordagens de temas polêmicos vestidas com uma roupagem melodramática, que se traduzem em histórias memoráveis, circundadas por uma atmosfera algo bizarra. Entretanto, também é notório que seu estilo espalhafatoso vem dando lugar a uma maneira de filmar mais contida, mas não menos intensa, é bom que se diga. Almodóvar vem demonstrando um grande amadurecimento, filme a filme, principalmente nos últimos oito anos.

Essa virada teve início com "Fale com ela" (2002), em que o cineasta exerceu toda a sua sensibilidade, para presentear seu público com uma trama de encontro em meio ao caos e à dor. Prosseguiu com "Má educação" (2004), em que a questão do abuso sexual cometido por padres apresentou contornos de homoerotismo, e que, pela primeira vez, trouxe um universo masculino em evidência num filme seu. O refinamento atingiu um grau ainda mais alto com "Volver" (2006), no qual, além de seu reencontro com sua musa Penélope Cruz, ele apresentou um drama familiar sobre mulheres em busca de uma reconciliação consigo mesmas e com o mundo.
Depois desse breve retrospectiva, nossos olhares se voltam para "Abraços partidos" (2009), sua mais recente produção, que não deve em nada aos seus filmes pregressos, por trazer, em sua essência, o que há de melhor em termos de Almodóvar. Mais uma vez, o realizador espanhol recrutou Penélope Cruz para interpretar sua protagonista. Escolha mais do que acertada, já que, nos últimos filmes em que atuou, ela vem demonstrando cada vez mais talento - vide o já citado "Volver", "Fatal" (2008) e "Vicky Cristina Barcelona" (2008). Aqui, ela dá vida a Lena, uma mulher linda e fascinante que vira a cabeça de um diretor de cinema. Só por essa pequena informação já se pode notar que a inserção do componente metalinguístico parece ser a mais nova obsessão do diretor.

Como em "Abraços partidos", seus últimos dois filmes apresentam alguma relação do cinema com o próprio cinema. Em "Má educação", Ignácio (Gael García Bernal) se propõe a transformar em filme a história de sua infância, depois de reencontrar Enrique (Fele Martinez). Em "Volver", Raimunda (Cruz) acaba trabalhando como cozinheira para uma equipe de filmagem que está rodando um longa perto de sua casa. Essa porção de metalinguagem acaba funcionando não só como um sinal da paixão de Almodóvar por um fonte de entretenimento e reflexão que virou seu ofício, mas também de que discorrer sobre o próprio fazer cinematográfico é um manancial inesgotável para cobrir a falta de ideias. É como o cronista que, na falta de assunto para a crônica, escreve uma crônica exatamente sobre a falta de assunto, incluindo aqui e ali um traço de banilidade, ícones de uma existência prosaica.

Observações subjetivas à parte, "Abraços partidos" (uma tradução romanceada para "Los abrazos rotos", do original, que seria algo como "Os abraços rasgados") conta a história de Matteo Blanco (Lluís Homar, excepcional), um cineasta que já viveu dias muito melhores. Hoje, ele é um homem amargurado, que convive com a cegueira resultante de um acidente acontecido 14 anos antes, e que abandonou as câmeras, preferindo escrever romances. Suas reminiscências de um passado idílico são despertadas quando ele é interrogado por Diego (Tamar Novas, de "Mar adentro"), o filho de sua antiga diretora de produção. Então, a trama recua exatamente esses 14 anos, e transporta o espectador para o dia em que as trajetórias de Matteo e Lena se cruzaram. É quando surge, linda e lânguida, a personagem de Cruz. À procura de um médico para seu pai, ela esbarra em Ernesto (José Luis Gómez), um homem rico que se apaixona perdidamente por ela.
Não demora para que eles se casem, mas Matteo surge na vida de Lena para injetar a emoção que ela procura. Aspirante a atriz, ela acaba conseguindo o papel de protagonista de sua nova produção, que remete bastante ao passado de cores berrantes de Almodóvar. A graça de filme é também essa: identificar os ecos do diálogo do diretor com sua própria obra, o que gera autocitações aqui e acolá. Ao longo desse "filme dentro do filme", portanto, ele abre seu grande baú de recordações, assim como o faz Matteo. Durante as filmagens, o caso de Lena e Matteo vai ficando cada vez mais sério, até que Ernesto descobre a traição da esposa, mas não consegue conceber sua vida distante daquela mulher tão impetuosa e deslumbrante.
A partir daí, a trama ganha contornos de tragédia, no sentido adjetivo da palavra, já que a fúria de Ernesto culminará em um acidente terrível com o casal de amantes. Há ainda espaço para um certo Ray X (Rúben Ochandiano), uma figura enigmática traduz seu desejo de vingança (por razões que quem assiste ao filme descobre) em uma aparência repugnante. Também a relação que ele mantém com os outros personagens é descortinada por meio dos esclarecimentos que as memórias de Matteo permitem dar ao público. O fato é que a love story não ganha um final feliz. Por conta disso, Matteo se desiludiu com a vida e, por tabela, com o cinema, e assumiu para si uma nova persona, Harry Caine. A cegueira é o resquício concreto de uma perda irreparável em sua vida.
Como se pode depreender, o roteiro de Almodóvar é bem alinhavado, com uma trama que prende a atenção sem a necessidade de recorrer a insights de estroboscopia para que o espectador se sinta envolvido pela narrativa. O diretor não abre mão de toda a sua passionalidade, entregando sequências carregadas de emoção genuína, que comovem por sua maneira de fluir. A câmera do cineasta percorre uma Espanha viva e, ao mesmo tempo, sombria, que combina com as recordações que Harry / Matteo vai apresentando.
Inserindo na crítica uma dose de experiência pessoal, digo que assisti ao filme no cinema, numa sessão em que eu era o único espectador, mesmo sendo uma sexta-feira, pouco depois do horário de almoço. Malgrado a solidão nas poltronas que me rodeavam, pude me concentrar mais do nunca em um filme, e mergulhar num misto de drama e suspense denso, penetrante e encantador. Pude comprovar, mais uma vez, a habilidade de Almodóvar em contar uma boa história, sem qualquer excesso ou ausência de algum elemento narrativo. Essa peculiaridade só reforça minha ansiedade a cada novo filme lançado pelo diretor. Em Cannes, a recepção a "Abraços partidos" não foi das mais calorosas. Isso revela uma tremenda injustiça, já que o filme merece toda a acolhida e todos os elogios que a ele se possam dar. Logo, Almodóvar vem aí novamente, num reencontro com um "muso" de sua galeria de personagens inesquecíveis: Antonio Banderas. Ele filmará "La piel que habito", sua primeira incursão no gênero terror. Desde já, olhos e ouvidos devem estar a atentos ao que está por vir.

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