10 de jun. de 2010

Entraves gerados pela chegada da adolescência em "À deriva"

Dono de uma filmografia ainda curta, Heitor Dhalia já vem mostrando que tem muito a dizer, e de uma forma deliciosa de se acompanhar. O realizador de "Nina" (2004), drama de tintas existencialistas inspirado na obra de Dostoiévski, e de "O cheiro do ralo" (2006), uma das melhores performances de Selton Mello nos últimos anos, chega ao seu terceiro filme interessado em observar as angústias geradas pelo crescimento, mais especificamente no período que corresponde ao final da infância e ao início da fase adolescente. Essa época da vida de um ser humano já serviu de material para inúmeros filmes, de diretores e nacionalidades o mais díspares possível. Só para citar os mais canônicos, há François Truffaut, que estreou no celuloide com o poético "Os incompreendidos" (1959), e o terno "Fanny e Alexander" (1982), de Ingmar Bergman.

Em seu filme mais recente, porém, Dhalia enveredou por um caminho bastante diferente daquele que seu antecessor levaria a supor. "À deriva" é uma espécie de baú de memórias revisitado pelo diretor e, como tal, carregado de linguagem subjetiva, filtrado pela sua perspectiva de indivíduo, que ele decidiu compartilhar com seu interlocutor que, por se tratar de uma obra filmada, acaba se tornando seu espectador. Não é um filme autobiográfico, entretanto. O longa pode ser definido como uma superposição de recordações vindas do universo infantil, que estão no coração de qualquer pessoa, ainda que indolentes e soterradas.

O objeto de filmagem do diretor brasileiro é a trajetória de Felipa (Laura Neiva, em composição acertada), uma menina de 13 anos que ainda não sabe muita coisa sobre a vida, como sua própria idade denuncia. Ela tem dois irmãos, com quem vive às turras, assim como acontece com qualquer outra família, e vem testemunhando involuntariamente o naufrágio silencioso do casamento de seus pais, vividos com muita competência por Débora Bloch e Vincent Cassel. O ator francês, conhecido por aqui por filmes como "Irreversível" (2002), "A isca perfeita" (2002) e "Doze homens e outro segredo" (2004) se sai muito bem na tarefa de aliar sua pronúncia do português a uma atuação marcante e precisa. Débora, por sua vez, também esbanja talento na pele de uma esposa amargurada e insegura com relação ao marido.

Como se vê, a trama proposta por Dhalia não apresenta muitos traços de originalidade. Trata-se, na verdade, de uma temática já bastante repisada no cenário artístico de uma maneira geral. Mas nem tudo num filme se resume à originalidade de ser argumento, e o diferencial de "À deriva" é a forma naturalista com que a ação se desenvolve. As lentes da câmera capturam a fragilidade de uma garota que ainda está se descobrindo como pessoa, e que tem todas as incertezas do mundo sobre o que realmente que ser e o que quer fazer da sua vida. Essa incertezas geram a inquietude e a angústia, porque ela nunca sabe exatamente como lidar com seus desejos, cometendo pequenos enganos que a narrativa do filme se ocupa de apresentar. Acompanhar a jornada de crescimento de Felipa é delicioso, pois traz à tona toda aquela gama de receios que perpassa a fase adolescente. Quem já a superou consegue perceber exatamente o quão graves se tornam quaisquer conflitos que atravessam o caminho de alguém que ainda não chegou ao vigésimo aniversário.
Os acontecimentos que mexem com o cotidiano de Felipa se dão em Búzios, cidade fluminense que é reduto de endinheirados em tempos de férias, um ambiente solar por natureza. O local serve com um ótimo contraponto para a personalidada introspectiva da protagonista, que se fecha como uma ostra ao menor sinal de ameaça. Diferentemente da cidade, que abre seus braços e acolhe a qualquer figura que a ela se dirija, sem distinção alguma. A rotina da garota inclui tardes idílicas na praia, aventuras com os amigos, e a descoberta de uma paixão, sentimento novo e inexplicável que a toma de assalto. Além da constatação de que seu pai, um escritor, está tendo um caso extraconjugal com uma modelo (Camila Belle) que está passando uma temporada na cidade. A junção desses pequenos acontecimentos vão formando os cacos de que a vida de Felipa passa a ser constituída. Cada um deles terá seu peso na formação do pensamento da menina, que terá de amadurecer, querendo ou não. É o momento do "adeus à inocência", chavão tão recorrentemente usado em críticas sobre filmes que versam sobre o final de infância quanto "dores do crescimento".
O fato de Laura Neiva ser uma estreante é um ponto que conta bastante a seu favor. Por se tratar de um rosto desconhecido, sua presença em cena injeta frescor a personagem, e traz um carisma inegável para si. Como atriz que se tornou, ela tem uma desenvoltura apaixonante, que remete a grandes estrelas que começaram na mesa idade que ela, como é o caso de Jodie Foster, que estreou em "Taxi driver" (1976), e de Brooke Shields, que foi lançada em "Pretty baby" (1978). A julgar pelo caminho trilhado pelas duas, o futuro de Laura é promissor. E o roteiro de Dhalia também premite uma duplicidade de atitudes muito oportunas. Felipa exibe um misto de ingenuidade com sensualismo, que transpiram com mais intensidade nas cenas em que ela tenta entender o que sente pelo namoradinho de ocasião, que também não sabe lidar com a devida destreza com o que sente pela menina, enfiando os pés pelas mãos a cada novo passo que tenta dar.
O título, se lido com bastante atenção, já entrega um pouco da perspectiva que acompanha Felipa. Como um barco que não sabe que rumo tomar, ela está à deriva, esperando um farol que a ilumine e a leve a um porto seguro, ou um leme que a conduza com menos sobressaltos por suas dúvidas. Em Cannes, o filme foi exibido em 2009, dentro da mostra "Un certain regard" (Um certo olhar), reservada a filmes de diretores com alguma experiência que trazem um ângulo diferente para um tema já visitado. O elenco, aliás, ainda conta com Cauã Reyomond, que tem conseguido cada vez mais espaço no cinema, como comporovam os longas "Se nada mais der certo" (2009) e "Divã" (2009).A recepção do público foi boa, e coroou o esforço de Dhalia em talhar uma obra que espia o abismo entre casais, as incongruências entre pensamento, fala e ação e o desejo de se afirmar mesmo quando não se sabe exatamente o que quer.

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