27 de ago. de 2012

Humor genuinamente divertido em Um assaltante bem trapalhão


Celebrado por entusiastas fiéis na contemporaneidade, Woody Allen galgou o primeiro degrau de uma carreira profícua há mais de quarenta anos. Nascia com Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969) um realizador exímio, de capacidade admirável para conceber retratos apurados de pessoas e fatos inusitados inseridos no cotidiano. Nessa estreia, ele apostou em piadas rápidas e eficientes, uma clara contribuição dos anos precedentes em que poliu sua verve cômica nos palcos, como um dos precursores do stand-up comedy que foi. A trama do filme gira em torno de Virgil Starkwell (o próprio Allen), um ladrão sem qualquer talento para exercer seu ofício. Sua história é narrada no melhor estilo mockumentary, que ele voltaria adotar outras duas vezes, a saber: em Zelig (idem, 1983) e Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999). Com isso, tudo sugere que o protagonista realmente tenha existido e acaba por deixar o longa com um gostinho mais divertido.

O título em um português é um tanto infeliz, mas tem lá a sua cota de pertinência. Afinal, os roubos de Virgil são sempre frustrados, devido a circunstâncias diversas que, ora o impedem de concluí-los, ora não permitem que ele escape impunemente do local do delito. E essas dificuldades têm potencial para gerar risadas deliciosas no espectador, que se vê diante de um filme curto e fluido, ainda com poucas marcas autorais que viriam a se multiplicar e desenvolver ao longo dos anos. É possível afirmar que esse seja um filme despretensioso e descompromissado, de um estética semelhante aos trabalhos da década seguinte de Allen, como Bananas (idem, 1971). Por outro lado, é possível notar que a argúcia do diretor já estava presente em Um assaltante bem trapalhão, sobretudo nas falas do narrador onisciente que pontua os passos da trajetória errática de Virgil e tece comentários nem sempre positivos a respeito dele. É como se Allen estivesse plantando as primeiras sementes do que viria a ser o seu cinema, e as regasse com um timing cômico que anda raro nos dias de hoje.

Virgil pode ser analisado como o protótipo do sujeito deslocado e em dificuldades amorosas que Allen refinaria ao longo de sua carreira, normalmente sendo interpretado por ele mesmo e que viria a ser considerado como o seu alter ego – para muitos, aliás, aquele seria o próprio cineasta, o que ele já fez questão de desmentir em entrevistas, e que também é um dos argumentos que seus detratores utilizam com demasiada frequência, chamando-o egocêntrico. Entre uma e outra tentativa de roubo, esse sujeito desencaixado de certas convenções sociais passa temporadas na cadeia, e só pensa em novas possibilidades de acertar com um novo crime. E, enquanto não o vemos se dar mal mais uma vez, conhecemos um pouco mais de sua vida e personalidade através dos depoimentos “colhidos” para o filme, sobretudo os de seus pais, hilariamente disfarçados por conta da vergonha que sentem do filho. A mãe tenta contemporizar e defender Virgil, dizendo que, apesar dos pesares, trata-se de um bom rapaz, enquanto o pai demonstra sua indignação por ter tentado colocar Deus no coração do filho e não ter obtido sucesso.



É bem verdade que a entrada de Virgil para o mundo do crime deriva diretamente de seu complexo de inferioridade, desenvolvido desde a infância, em sequências que o mostram ainda como um garotinho ruivo e de óculos, sempre em fuga e desejoso de ser aceito. Trata-se de mais um indício das futuras recorrências allenianas: a leitura (algo) psicanalítica de um personagem que, (quase) inevitavelmente, desemboca em traumas e eventos dos primeiros anos de vida. Para seus admiradores, é um exercício bastante interessante e produtivo buscar essas referências ao longo do filme, e elas se tornam mais claras para quem já tiver conferido previamente um ou mais filmes seguintes do diretor, que permitem a adoção de parâmetros de comparação. Entretanto, Um assaltante bem trapalhão dispensa pré-requisitos, mesmo porque é a obra inaugural de Allen, o qual entraria em um ritmo de produção de tirar o fôlego poucos anos mais tarde, que se traduz no lançamento de um filme por ano desde o início da década de 80, mais precisamente com Sonhos eróticos de uma noite de verão (A midsummer night's sex comedy, 1982). De lá para cá, surgiram inúmeros trabalhos que conquistaram público e crítica, embora ele nunca tenha se firmado como uma unanimidade: opiniões heterogêneas a respeito de qualquer coisa sempre existirão.

Allen teria estreado como diretor, segundo alguns, três anos antes com O que há, tigresa? (What's Up, Tiger Lily?, 1966), mas é difícil falar em direção para esse filme quando, na verdade, ele apenas redublou as falas dos personagens, tendo concebido um roteiro juntamente com Senkichi Taniguchi. Portanto, Um assaltante bem trapalhão é que acaba por atender às prerrogativas daquilo que se pode chamar de filme próprio de um diretor, sendo muito mais sensato apontá-lo como sua estreia no celuloide. Entre as curiosidades relativas ao filme, está o fato de a data de nascimento de Virgil ser a mesma de Allen: 1 de dezembro de 1935, o que leva o personagem a ter seus 34 anos. Nessa idade, sobrava disposição no cineasta para a comédia física, e ele se desdobrou em várias cenas de correria e perseguições, muitas delas bastante divertidas – a sequência em que ele tenta assaltar uma loja de animais e sai correndo de lá com um macaco atrás dele é um achado do humor nonsense. Com o tempo, ele abandonaria a interpretação de personagens que exigissem muito de sua envergadura física, preferindo os tipos hipocondríacos e com ataques de pânico. Outro detalhe interessante dos bastidores é que Allen decidiu dirigir o filme por medo que as filmagens se tornassem caóticas como as de Cassino Royale (idem, 1966). Assim, ele teria o controle da produção e nasceria aqui um cineasta de olhar clínico, bom piadista, verborrágico, cheio de autorreferências e vários ingredientes que o fariam conquistar um séquito de entusiastas leais.

23 de ago. de 2012

As peripécias de um devotado ao humor ou O mundo de Andy


James Eugene Carrey – mais conhecido como Jim Carrey - é dono de um currículo bem fornido de comédias com forte apelo popular, sobretudo as que estrelou na década de 90. Diante da indisposição da quase totalidade da crítica para os filmes do gênero, o ator demorou a ser levado a sério, com o perdão do trocadilho. Somente no final da década ele começou a ser mais respeitado, exatamente quando Milos Forman o recrutou para O mundo de Andy (Man on the moon, 1999), cinebiografia de um obstinado pelo riso que caiu como uma luva para o arsenal de caretas do intérprete, que soube usá-las novamente a seu favor para engendrar um ponto de virada em sua carreira. Entretanto, dessa vez, quem mais se entusiasmou com seu trabalho foi a crítica, visto que as bilheterias não responderam a contento. O filme aborda vários anos da vida desse que foi considerado um dos mais excêntricos artistas do humor, com capacidade para comprar brigas sérias em nome de sua vocação para satirizar a tudo e a todos.

Cinebiografias são uma especialidade de Forman, que, três anos antes, havia dirigido O povo contra Larry Flynt (The people vs. Larry Flynt, 1996) e arrancado o que talvez seja o melhor desempenho da carreira de Woody Harrelson até hoje. Em O mundo de Andy, essa habilidade do realizador é novamente sublinhada desde a sequência inicial, em que o protagonista discorre sobre a dificuldade de se aturá-lo, propondo que o espectador abandone a sessão antes que se arrependa. Trata-se de um monólogo divertidíssimo, que sentencia o quanto Andy não está disposto a sacrificar suas convicções sarcásticas para agradar a quem quer que seja, nem mesmo o público que foi conquistando ao longo de sua ascensão sob a condição de comediante. Seu caminho é trilhado a duras penas, traduzindo-se em um percurso quixotesco em vários sentidos, inclusive pela presença de uma espécie de Sancho Pança, o seu incasável e fidedigno agente George Shapiro, vivido por um Danny DeVito na flor da inspiração. Boa parte dos êxitos alcançados pelo humorista no que se refere a espaço na mídia vem dos esforços contínuos de Shapiro.

Vale ressaltar que Carrey não era a única opção que Forman tinha em mente. Ele chegou a cogitar Edward Norton, com quem já havia trabalhado em seu longa anterior, para o papel. Incapaz de decidir, passou a bola para o estúdio, que bateu o martelo e elegeu Carrey para o personagem, o que se revelou uma escolha bastante acertada, justificável pelo desempenho memorável do ator, devidamente indicado e premiado com o Globo de Ouro de ator cômico. Aliás, O mundo de Andy se firma como uma comédia heterodoxa, cujos frouxos de riso despertados no público advêm de uma série de situações bizarras e surpreendentes. Cada espetáculo de Andy era uma caixinha de surpresas também no que se refere às reações da plateia de seus shows: ele era capaz de provocar risos, lágrimas, brigas e muitos outros tipos de desdobramentos com suas piadas e pantomimas, o que lhe rendeu a antonomásia de gênio da comédia estadunidense. Para o público do filme, cada um desses momentos é fonte de deliciosas gargalhadas, e nem é preciso concordar com a ideia de que Andy foi genial para, no mínimo, simpatizar com a figura.


Entre os coadjuvantes, também se encontram Paul Giamatti, ótimo na pele de Bob Zmuda, o grande parceiro de palco de Andy, capaz de embarcar em todas as suas ideias mirabolantes, fruto de suas idiossincrasias bem-humoradas, que incluem uma simulação épica de sua própria morte. O filme é uma bela oportunidade para conferir Giamatti em um dos papéis anteriores à sua atual zona de conforto interpretativa, iniciada com o superestimado Sideways – Entre umas e outras (Sideways, 2004). Seu tônus dramático estava em dia aqui, ainda que a função básica de seu personagem seja servir de escada para o de Carrey. Além dele, Forman reeditou sua parceria com Courtney Love, dando-lhe o papel da namorada de Andy, ela mesma incapaz de lidar o tempo todo com as mil peripécias do artista. É uma pena que, poucos anos depois, a carreira de atriz de Love tenha entrado em declínio por conta de uma série de escolhas equivocadas que levaram seu nome a figurar em títulos como Encurralada (Trapped, 2002), que não trazem qualquer relevância para o currículo de ninguém.

O alto grau de realismo alcançado pela direção de Forman e pelo roteiro concebido a quatro mãos por Scott Alexander e Larry Karaszewski é decorrente de três anos de uma pesquisa que inclui entrevistas com amigos, familiares e inimigos declarados de Andy. Cada uma delas serviu de contribuição para a feitura do texto, de acabamento meticuloso e – o mais importante – excelente timing cômico. A dupla de roteiristas do filme, aliás, sempre trabalha junta, e são mais dois dos colaboradores que o diretor trouxe de seu filme precedente. Contudo, ele não voltaria a dirigir um longa escrito por ambos, e entraria em um jejum de sete anos, quebrado com Sombras de Goya (Goya’s ghosts, 2006), outro exemplo de sua predileção por retratos biográficos. Ao longo de suas quase duas horas de duração, O mundo de Andy nos faz ver que uma das palavras-chave da vida do comediante era intensidade, sobretudo no tocante ao seu ofício da vida inteira, do qual não abria mão até mesmo quando caberia um ou outro mea culpa. Guardadas as devidas proporções, Sacha Baron Cohen faz algo semelhante a cada vez que promove um de seus filmes de humor negro declarado e não sai de seu personagem. O filme é, enfim, um intenso, apaixonante e comovente retrato acidentado da carreira e da vida de um homem que fez do humor a sua incógnita, despertando gargalhadas entusiásticas (ou não) em seu público sempre atordoado.

15 de ago. de 2012

Efeitos da contemplação retratados em Blow-up – Depois daquele beijo


Depois de concluir o seu triunvirato de filmes sobre a incomunicabilidade e filmar um epílogo estupefaciente para eles, Michelangelo Antonioni partiu para a Inglaterra, onde concebeu Blow-up – Depois daquele beijo (Blow-up, 1996), mais um estudo profundo dos efeitos da contemplação levada a altos graus. Não se deixe enganar pelo subtítulo nacional “sedutor”: ele não acrescenta nada à narrativa; antes, serve para confundir o público, que pode ser levado a esperar uma história de amor cujo marco inicial é puro romance. Na verdade, o cineasta direciona o seu olhar para Thomas (David Hemmings), um fotógrafo de moda que leva a vida na maciota, transitando pelo mundinho artístico da Londres de seu tempo. Dono de uma postura algo lânguida, ele só sai de sua apatia quando se vê na necessidade de ser rude com as modelos que fotografa, as quais trata como meros seres passíveis de foco e enquadramento para suas lentes.

Toda a trama do filme transcorre em um pequeno arco de tempo, uma das especialidades de Antonioni, haja vista a sua proposta em títulos como A noite (La notte, 1961) e O eclipse (L’eclisse, 1962). Em um único dia, Thomas passa por uma manifestação de jovens que defendem a liberdade – espécie de precursores do que viria a ser conhecido poucos anos depois como flower power -, cumpre sua agenda de compromissos de trabalho – uma sessão de fotos para um livro de arte - e testemunha o enlace amoroso de um casal que se encontrava furtivamente em um parque. Sempre atento a detalhes, ele clica alguns momentos desse casal, até que sua presença é notada por Jane (Vanessa Redgrave), a mulher, que não gosta nada de saber que está sendo fotografada por aquele desconhecido. As fotos tiradas por Thomas são uma arma perigosa para os amantes, e ela insiste em ter as imagens, o que ele nega peremptoriamente.

Mais tarde, ele se dá conta de um detalhe crucial presente na foto, o qual decide investigar a fundo por conta própria, e esse é o nó da narrativa do longa. A sua base está no conto de Julio Cortázar, escritor cuja prosa se revela incômoda e permeada por aspectos um tanto bizarros que constam do próprio cotidiano. Bebendo diretamente dessa fonte, Antonioni faz uma exegese do olhar, envolvendo o filme com uma atmosfera ebúrnea e altamente contemplativa, que pode ter um efeito sonífero para alguns espectadores: são os famigerados tempos mortos, que, aqui, têm toda a relevância. O andamento lento da trama é ditado pela dificuldade de Thomas em desvendar o mistério da foto ao mesmo tempo em que lida com procura de Jane, que não desiste de ter nas mãos as provas de sua infidelidade, que nunca é declarada, mas sempre sugerida. Dessa característica de Blow-up – Depois daquele beijo, nasce sua beleza e seu magnetismo oscilante.


Também é interessante notar que, exatamente 15 anos depois, outro diretor se valeu de uma premissa semelhante para um filme: foi Brian De Palma, que, ao filmar Um tiro na noite (Blow out, 1981), estabeleceu um diálogo muito interessante não apenas com a obra hitchcockiana, mas também com esse trabalho de Antonioni. A diferença mais imediata entre ambos, porém, é que o foco de De Palma está nos sons, e não nas imagens. De qualquer maneira, o longa em questão é um pouco menos inspirado que os anteriores do italiano. Coincidentemente, é o seu primeiro filme rodado em língua inglesa e filmado em parte fora de seu país de origem, e também conquistou um bom retorno financeiro nas bilheterias, chegando a um faturamento quase 20 vezes maior que o seu orçamento. A crítica da época louvou a ousadia do filme, que, com seu sucesso comercial, cooperou com o processo de libertação de Hollywood de sua “lascívia puritana”, nas palavras daquele tempo. Nada que hoje possa realmente surpreender nossa visão, porém. Ainda assim, houve quem o vislumbrasse como uma obra seminal, comparável a títulos como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Se se trata de um exagero, fica por conta de cada um dizer após ver o filme.

Subjetividades à parte, o fato é que Blow-up – Depois daquele beijo representou uma mudança de ares na carreira de Antonioni, que deixou de lado boa parte da introspecção flagrante de seus filmes anteriores para abraçar uma estética mais vibrante e jovial, por assim dizer. Ainda que tenha investido novamente em uma conjuntura de contemplação, aqui há espaço para arroubos visuais e sonoros que não se encontravam antes em sua obra, o que, para o bem ou para o mal, demonstra a sua versatilidade. Para efeitos de comparação, o filme está para Antonioni como Ponto final (Match point, 2005) está para Woody Allen e, curiosamente, ambos partiram para o mesmo país ao engendrar sopros de renovação para suas respectivas filmografias em seus respectivos tempos. No caso do filme do italiano, o que mais depõe contra ele é a sua mornidão, que pode levar até mesmo ao desvio dos olhos da tela em alguns instantes por pura falta de interesse. É como se a languidez que havia funcionado tão bem com os protagonistas da Trilogia da Incomunicabilidade incomodasse de outra maneira aqui. Ainda assim, estamos diante de um bom filme, que consegue nos remover da indiferença com sua pulsação lenta e seus ingrediente enigmáticos.


7 de ago. de 2012

Três é demais: uma abordagem cáustica da vida


Não se deixe enganar pelo título nacional ridículo. Três é demais (Rushmore, 1998) é a segunda incursão de Wes Anderson por trás das câmeras, e se revela uma obra espirituosa e inusitada sobre a multipolaridade de uma pessoa. No caso, a de Max Fischer (Jason Schwartzman), que reúne em si várias características que o tornam o arquétipo perfeito do CDF e, quiçá, do loser – aquele conceito tão nefasto engendrado nos EUA que caiu no uso popular dalém das fronteiras do país. Sua trajetória é acompanhada de perto pela câmera de Anderson, que o flagra no ambiente de uma escola de ensino médio, dentro do qual ele tem de lidar com a animosidade de seus colegas, que manifestam constante intento de atormentá-lo. Entretanto, Max não é exatamente (ou somente) daqueles jovens tímidos que experimentam o vilipêndio de forma omissa. Quando vê necessidade, ele adota uma conduta pró-ativa e faz acontecer para vingar seu orgulho nerd.

O tal título nacional boboca ganha um leve sentido quando entram em cena os outros dois vértices daquilo que, em pouco tempo, configura-se como um triângulo amoroso. Max se torna amigo e, em seguida, apaixona-se pela Srta. Rosemary Cross (Olivia Williams), uma complicada professora da pré-escola. Para chegar junto dela, Max busca uma ajudinha de Herman Blume (Bill Murray, sensacional), um milionário cuja felicidade é inversamente proporcional à quantia pecuniária de que dispõe. Inicialmente o seu mentor, Herman logo se apaixona por Rosemary também, e a parceria entre ele e Max é inevitavelmente rompida: os dois passam a se digladiar, ocupando lados ostensivamente opostos em uma espécie de trincheira sentimental. A verdade é que ambos sucumbem às armadilhas de seus corações e demonstram grande falta de tato para lidar com elas. Com isso, surgem momentos engraçadíssimos em Três é demais.

Muitos dos elementos que se tornariam marcas registradas do realizador mais adiante se encontram presentes nesse filme. O principal deles é o olhar de sensibilidade e humor acurados sobre seus personagems, que coloca suas mazelas e pequenas bizarrices e contradições em alto-relevo. Tanto Max quanto Herman apresentam traços um tanto cartunescos, mas não é nada que comprometa a verossimilhança de ambos e impeça uma leve ou profunda identificação por parte do espectador. Max é do tipo multitalentos: já gastou boa parte de seu tempo livre em atividades extracurriculares das mais diversas possíveis, como cuidar da edição do jornal da escola ou presidir um clube de astronomia, e que são mostradas em uma sequência divertida e curiosa. Essa inclinação do personagem para ocupações tão díspares é um dos índices de sua personalidade complexa, difícil de encampar e resumir em duas ou três palavras. E é exatamente essa confluência de contradições que o tornam tão próximo do espírito de multiplicidade de tantos outros jovens. Seu jeito de ser leva até mesmo a pensar que ele poderia perfeitamente ser um sobrinho ou um neto do Boris Yellnikoff (Larry David) de Tudo pode dar certo (Wheatever works, 2009), outro sujeito de vários talentos e que, como Max, exibia um comportamento algo misantropo.


Por sua vez, Murray faz misérias interpretativas na pele e no corpo de Herman, iniciando aqui uma parceria altamente produtiva com Anderson, a qual permanece até hoje e já rendeu seis filmes contando com esse e passando pela animação O fantástico Sr. Raposo (The fantastic Mr. Fox, 2009), na qual usou apenas sua voz para dar vida ao Texugo. No filme em questão, ele confere uma mistura de graça e impavidez ao seu Herman, somada a alguns espasmos melancólicos que fazem oscilar o sentimento de apreço pelo personagem. Afinal de contas, ele entra no meio da jogada de Max – com quem, àquela altura, já simpatizávamos – e tira tudo de seu lugar. Por outro lado, não chega a ser possível classificar um ou outro como vilão ou mocinho: esse tipo de nomenclatura não encontra respaldo na filmografia de Anderson, cujo nome, aliás, traz as mesmas iniciais de Woody Allen, outro mestre no árduo trabalho de construção de caricaturas plausíveis. A comparação entre Max e Boris, portanto, é mais uma das associações possíveis e imagináveis entre as obras de ambos, de qualidade e relevância bem próximas.

O campo de Anderson foi e continua sendo o cinema independente. Seus filmes não demontram a menor preocupação em alcançar platerias numerosas: antes, trazem consigo toda a fidelidade do diretor a um estilo próprio, particular e que dialoga com outras referências ao mesmo tempo. Três é demais se mostra exatamente assim. Com seus 90 e poucos minutos de duração, o filme destila uma narrativa fluente e personagens cômicos e multidimensionais com quem se poderia facilmente esbarrar nos corredores da vida, além de meditar, com discreta irreverência, sobre nossas tendências a falas e atitudes tantas vezes incoerentes. Anderson também gosta de colaborações duradouras, daí a recorrência de Murray e do próprio Schwartzman em sua filmografia, assim como Owen Wilson, com quem também conserva uma relação de co-autoria em vários de seus trabalhos, incluindo esse. E ainda sobra espaço para as pontas de Connie Nielsen e Luke Wilson, atores subestimados para boa parte da crítica que têm lá o seu valor. Com Três é demais, Anderson nos faz perceber que, quando o assunto são as querelas do coração, atos inesperados vêm como cartas na manga. E os absurdos da vida são melhor analisados com umas boas pitadas de sarcasmo.

3 de ago. de 2012

Kramer vs. Kramer, um eficiente retrato de família


O conceito de família remonta aos tempos bíblicos. Desde que foi criada, a instituição já foi transformada pelo homem de várias maneiras, e o cinema, em seu componente de imitador da realidade, apropriou-se dessas transformações ao longo de sua existência. Kramer vs. Kramer (idem, 1979) é um dos filmes que se debruça sobre essa temática com grande eficiência. Rodado em uma época na qual o divórcio já se encontrava à disposição dos cônjuges insatisfeitos, o longa de Robert Benton mira suas lentes em direção a Ted (Dustin Hoffman) e Joanna Kramer (Meryl Streep). Um dia, ela demonstra todo o seu fastio em estar casada com ele e simplesmente vai embora de casa, alegando que lutou o máximo que podia para evitar que a situação chegasse àquele ponto. A notícia cai como um balde de água fria sobre a cabeça de Ted, que tinha acabado de chegar em casa contente e ansioso para contar à esposa que havia conseguido uma colocação melhor no trabalho.

Com a partida de Joanna, da qual não consegue demovê-la, Ted se vê, de repente, com a obrigação de cuidar de Billy (Justin Henry), o filho do ex-casal. O cotidiano de Ted passa, então, por uma reviravolta, que lhe faz reavaliar suas prioridades e colocar o menino em primeiro lugar no pódio das suas responsabilidades. Ele sempre deu grande importância ao trabalho, a ponto de privar a família de sua presença em momentos cruciais, e essa é uma das razões que Joanna aponta, logo nos primeiros minutos de filme, para deixá-lo. Nesse detalhe da personalidade do protagonista, encontra-se um pequeno clichê que ainda seria bastante explorado pelo cinema nos anos seguintes: o do pai que precisa levar um baque para se dar conta de que a família precisa estar acima de tudo na lista de cuidados de um homem. Seja no drama, seja na comédia, o tema já rendeu filmes como Click (idem, 2006). Entretanto, Benton conduz seu filme de forma honesta e orgânica, sem torná-lo um mero produto industrial cheio de palavrórios sobre o assunto.


O aprendizado de Ted vem na marra, dia após dia, em meio a muitos improvisos e pequenos incidentes diante dos quais ele tem que se virar, como quando o café da manhã que tenta preparar para Billy se torna um desastre ou quando o menino sofre uma queda no parquinho em que costuma brincar. Todas essas lições só se tornam possíveis em virtude da ausência de Joanna, e servem para Ted exercitar o seu amor paternal. Até o dia em que ela volta, dizendo-se arrependida e disposta a recuperar o tempo que perdeu afastada do filho, trazendo-lhe benefícios decorrentes da situação financeira mais confortável que seu trabalho lhe proporciona. O retorno de Joanna pega Ted tão de surpresa quanto a sua partida, e não é nada fácil para aquele pai de família que assumiu o seu lugar encarar a mudança de ideia da ex-mulher. E ambos vão parar diante de um juiz para defender seus respectivos lados e conquistar a guarda do menino, ainda incapaz de decidir com qual dos genitores é melhor estar a maior parte do tempo.

A essa altura, Kramer vs. Kramer ganha traços de filme de tribunal e coloca o espectador em contato com os pontos de vista dos protagonistas para que tome sua decisão particular. Quem está com a razão? O que é realmente melhor para Billy? A dúvida pode surgir mesmo diante do fato de Joanna ter abandonado o seu lar. Afinal, o roteiro do próprio Benton, escrito a partir do romance de Avery Corman, foge de cair na malha fina do maniqueísmo, e apresenta argumentos convincentes para ser favorável a um ou a outro. Recentemente, A separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011), produção israelense premiada com o Oscar de melhor filme estrangeiro, tratou acerca do mesmo assunto com mais habilidade e inquietação. Mas o longa de Benton também exibe muitos aspectos positivos além dos que já foram apontados. Os desempenhos de Hoffman e Streep são outros deles. Ambos defendem seus papéis com intensidade e emoção, tornando difícil apoiar apenas um deles. Ted é o pai de prioridades redimensionadas, ao passo que Joanna é a mãe arrependida de um mau passo. Como conciliar ambas as verdades em prol do bem-estar de Billy? Nesse sentido, o filme se mostra conclusivo em relação ao seu “descendente” oriental, chegando à sua sequência derradeira com um acerto de contas emotivo e sincero entre o ex-casal, em plena coadunância com o espírito que guiou todo o filme até ali.