A obra de Ingmar Bergman já se encontra inscrita no cânone cinematográfico. Tal qual Machado de Assis ou Fiódor Dostoiévski para a literatura universal, só para citar dois exemplos, a produção bergmaniana é preciosa para o cinema.
Sua filmografia é vasta, mas se tivéssemos de resumi-la em uma única palavra, talvez a melhor fosse: interiores. Daí, pode-se desdobrar o que configura a grande busca do diretor: o entendimento do que se passa no coração dos homens, a angústia que qualquer um tem diante da existência e de sua finitude, as incongruências da vida a dois, o silêncio que paira, latente e lancinante, entre os homens, ainda que se fale muito e se dialogue muito. Temas universais, como se vê, ainda que quase toda sua obra tenha sido filmada na longínqua Suécia.
No caso de “Morangos silvestres”, a chave para que se penetre no longa não está presente desde seu título, um tanto obscuro, mas interessante. O interesse de Bergman no filme é flagrar a memória, uma das mais importantes ferramentas que um indivíduo tem, pois se trata de uma aliada do conhecimento.
A memória específica de que o sueco fala no filme é a de um professor de idade avançada, que tem um prêmio importante para receber na cidade onde morou, por sua contribuição como docente e como médico. Para chegar ao local da honraria, toma seu carro, e para lá segue com sua nora. No caminho, é tomado por lembranças de episódios de sua longa vida. Lembranças boas e ruins, que trazem à boca e ao coração gosto de mel ou de fel, como ocorre com qualquer indivíduo. O mergulho feito pelo personagem em suas memórias é acompanhado pelo espectador, que flagra a infância do personagem ,na qual ele costumava colher morangos silvestres, o que justifica o título dado ao filme. O idoso relembra festas, diálogos, pessoas, cores, sabores, texturas e emoções que o atravessaram ao longo do tempo.
Ainda que em preto e branco, a história é contada com belas imagens, e num ritmo lento para os padrões contemporâneos. Lentidão que cabe às recordações de alguém que já não tem mais seus vinte anos. E vale lembrar também que o longa foi rodado no distante ano de 1957, época em que Bergman dirigira outra pérola: “O sétimo selo”. Apesar de longe no tempo, o cinema de Bergman não ficou datado. Suas questões são ainda atuais, pois o ser humano é sempre ser humano, em qualquer lugar ou momento histórico.
Os filmes do cineasta evocam todo tipo de discussão: filosófica, existencial, psicanalítica. A preocupação aqui não é enveredar por nenhum desses caminhos, mas apenas descrever o êxtase gerado pela contemplação de pequenas epifanias de alguém que já percoreu uma extensa trajetória, o que Bergman faz como poucos. Ele desnuda o humano, expondo suas fragilidades, tendo a câmera como cúmplice. É como se, em certa medida, o espectador também fosse desnudado, a partir da identificação que tem com as cenas apresentadas.
São esses fatores que, somados, dão beleza, graça e vitalidade a “Morangos silvestres”. É cinema autoral, que não se faz preocupado em arrebatar grandes platéias, e que deleita olhos enfadados de efeitos visuais escalafobéticos. Um cinema que se faz sem traço algum de maniqueísmo, sem a preocupação de se colocar um herói e seu antagonista. Até porque, sabe-se muito bem, nós mesmos podemos ser nossos maiores inimigos.
Assistir ao filme é tarefa obrigatória. Mas é uma obrigação que e cumpre com extremo prazer por aqueles que se interessam por vislumbrar a dimensão do humano, e que desejam compartilhar, ainda que pela simples contemplação, a dúvida sobre o sentido da vida, a maior inquietação que temos.
27 de ago. de 2009
15 de ago. de 2009
"Pequena Miss Sunshine" ou a saga de um clã disfuncional
Um dos maiores achados dos últimos anos no cenário independente é, sem sombra de dúvida, "Pequena Miss Sunshine". O filme marca a estreia na direção do casal Jonathan Dayton e Valerie Falls. Estreia alvissareira, diga-se de passagem.
Nada como acompanhar uma história muito bem contada, com sabor de alegria e uma dose de lágrimas de comoção. Unindo esse dois polos aparentemente antagônicos, a dupla de diretores exibe um conto para toda a família, capaz de gerar identificação com algum dos tipos apresentados.
O clã retratado no filme está longe de representar o que o mundo ocidental conhece como o modo de vida "americano" (prefiro o termo estadunidense). Na verdade, eles são extamente o oposto desse modelo tão propagado por toda a parte.
Cada membro da fampília exibe algum tipo de disfuncionalidade. O patriarca é Edwin, vivido por um inspirado Alan Arkin, viciado em heroína e emissor de frases com alto teor de sarcasmo. Ele está ensaiando sua neta, a pequena Olive (Abigal Breslin) para um concurso de beleza infantil, que dá título ao filme. Os passos da coreografia são um segredo compartilhado pelos dois, o que gera uma certa preocupação nos pais da garota.
Richard (Greg Kinnear) é o pai, autor de um método de auto-ajuda que garante o sucesso em apenas alguns passos. Mas a única coisa que ele consegue com isso é o fracasso.
Seu filho mais velho, Dwayne (Paul Dano, ótimo), fez voto de silêncio, que durará até que ele se torne piloto, seu sonho de vida.
Para completar o festival de pequenas "bizarrices", o irmão de Sheryl (Toni Collette), a mãe, acaba de tentar o suicídio, depois de ter sido abandonado pelo namorado, que preferiu um outro homem mais especialista em Proust do que ele. O tio em questão é vivido pelo excelente Steve Carrel, que dá dignidade ao personagem, um dos primeiros interpretados por ele depois do estouro de "O virgem de 40 anos".
Com momentos oscilantes entre drama e humor, o filme exibe uma galeria de tipos carismáticos, que conquista desde o início o espectador. É difícil ficar indiferente à viagem que os familiares fazem em uma velha Kombi amarela para chegar ao local do concurso do qual Olive tanto sonha participar. Com sua doçura, a menina consegue fazer com que todos comprem seu desejo de vencer a competição e, no caminho, verdades virão à tona e um triste acontecimento marcará a família.
Recheado de passagens marcantes "Pequena Miss Sunshine" merece ser visto e revisto. O filme arrebatou o público desde sua primeira exibição, no festival de Sundance, reduto do cinema independente. No Oscar 2007, também se saiu muito bem, levando as estatuetas de melhor ator coadjuvante para Arkin e melhor roteiro original. Merecia muito mais.
Merece destaque o momento em que Dwayne descobre que não poderá ser piloto, e Olive, sem dizer uma única palavra, consegue convencer o irmão a seguir na viagem com todos. E também a louca coreografia apresentada pela menina quando concorre ao prêmio. A maneira como ela arrasta os pais, o tio e o irmão para acompanhá-las num ritmo um tanto inapropriado para sua idade.
E é assim, entre risos e lágrimas, que "Pequena Miss Sunshine" vai direto no coração, e ensina de maneira simples uma lição valiosa: família é sempre família, seja aqui, seja numa tribo remota de um lugarejo na África. O importante é saber conviver com aqueles que não escolheu.
9 de ago. de 2009
"A rosa púrpura do Cairo", uma declaração de amor ao cinema
Woody Allen adora se utilizar da metalinguagem, nas mais diferentes formas. Seja falando do universo dos ricos e famosos (Celebridades), seja desnudando as agruras existenciais de um diretor (Desconstruindo Harry), seja mostrando o mundo da magia (Scoop - O grade furo). De tempos em tempos, o cineasta se volta para esse profícuo terreno.
"A rosa púrpura do Cairo" talvez seja um dos exemplos mais felizes de incursão nesse ambiente. O próprio Allen já declarou que é o seu filme favorito.
Aqui, ele narra a história de uma simpática garçonete apaixonada por cinema. Quase todos dos dias, ela vai à sala escura de sua pequena cidade e se delicia com o que estiver em cartaz. Essas idas ao cinema são como escapadas que ela dá do mundo real. Uma espécie de refrigério em meio à realidade triste que ela vive. Seu marido (Danny Aiello) é um bronco que vive de explorá-la, o que a torna ainda mais desiludida.
Depois de ver e rever um filme chamado "A rosa púrpura do Cairo", ela testemunha o que parecia impossível: o ator principal, cujas falas ela já havia decorado, sai da tela, e passa a viver na realidade. O romance entre os dois é quase inevitável.
Desde o início, o filme é uma declaração apaixonada ao cinema, conduzida com simplicidade e genialidade. Estão lá algumas marcas de sua direção: diálogos ágeis, trama divertida sem abrir mão da inteligência, algumas neuroses dos personagens principais.
Não é preciso muito para que um filme se torne inesquecível, e "A rosa púrpura do Cairo" consegue o feito com poucos elementos. A sucessão de fatos engraçados que se dá após a saída do protagonista do filme é um dos achados do longa. Jeff Daniels se sai muito bem na pele do personagem, e também do ator que interpreta o personagem. O ator consegue imprimir uma marca diferente a cada um dos tipos, o que resulta numa interpretação de primeira.
Apesar da ausência de Allen na frente das câmeras, Mia Farrow segura muito bem o interesse por sua protagonista, e está no limite exato entre a doçura e a ingenuidade.
Esse é daqueles filmes que conquistam o espectador à primeira cena, por sua atmosfera de lirismo e encantamento. Da extensa galeria alleniana, é um dos que mais merecem ser visto e revisto. Trata-se de um convite à fantasia impossível de se recusar.
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7 de ago. de 2009
A jornada de autodescoberta de "Um beijo roubado"
"Um beijo roubado" é mais um exemplar do belo cinema de Wong Kar-Wai. É daqueles filmes cuja personalidade do diretor se impõe à obra. O que, no caso do chinês, não é prejudicial.
A narrativa desse que é seu primeiro filme rodado em inglês está centrada na figura de Elizabeth Norah Jones, uma grata surpresa), mulher que acaba de encerrar um relacionamento amoroso e, por isso, está com o coração partido. Ela encontra um pouco de consolo na companhia transitória de Jeremy (Jude Law, charmoso como sempre), que também é um sujeito desprovido de um par. Jeremy é dono de um café, e chama a atenção de Elizabeth o fato de uma torta permanecer inteira no balcão. A torta é feita com mirtilo, a frutinha exótica presente no título original do filme. Ela estranha a situação, e Jeremy lhe explica que a torta está ali nao porque seja ruim, mas porque está à espera de paladares mais apurados, que saibam apreciá-la.
Daí se pode extrair uma espécie de analogia com os seres humanos. Como a torta, estamos na vitrine (a própria vida) aguardando que o melhor paladar venha ao nosso encontro e nos aprecie a contento. Com isso, acabamos por não atentar para quem já está muito próximo de nós e poderia ser a melhor pessoa para nos relacionarmos. E seguimos nossos caminhos solitários e exigentes.
Como Elizabeth e Jeremy, os demais tipos presentes no filme são o retrato do abandono e da solidão crônica. Papéis que são defendidos com veemência notável por Rachel Weisz, uma mulher que foge da violência do ex-marido, vivido por David Strathairn. E por Natalie Portman, que personifica uma jovem esquecida pelo pai que duvida de tudo e de todos.
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