17 de mai. de 2012

Um tiro na noite e o requinte do suspense policial

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O forte de Brian De Palma sempre foram os filmes policiais e de suspense. Ao longo de sua carreira, ele se dedicou a tramas que flertam com a gramática desses dois gêneros, muitas vezes com traços de noir. Em Um tiro na noite (Blow out, 1981), esses índices se revelam acertados, com o foco sobre Jack Terry (John Travolta), um funcionário de uma produtora de cinema que só trabalha com filmes B – uma deixa maravilhosa para o diretor brincar com alguns clichês habituais desse subgênero. O início já traz o componente metalinguístico que acompanhará a obra até ao seu desfecho: trata-se de uma cena de um dos filmes de suspense rodados pela produtora, em que uma jovem está prestes a ser cruelmente assassinada. Diante da morte iminente e inevitável, ela grita ridiculamente, fazendo Jack interromper a filmagem para pedir à atriz neófita que refaça a cena e grite de modo mais assustador. É quando nos damos conta de que estávamos no filme dentro do filme.

A magia de Um tiro na noite se instaura logo nesses primeiros minutos. De Palma testa seu domínio da imagem e da narrativa enredando o público em uma atmosfera de genuíno suspense de ecos hitchcokianos, a referência mais facilmente identificável da película. O teor de mistério deriva da ocasião em que Jack está captando ruídos para o novo filme da produtora, já que ele é um respeitado engenheiro de som. Em uma noite escura e deserta, ele ouve algo que se parece com um tiro e, ao averiguar mais de perto, percebe que “testemunhou de ouvido” um terrível acidente (?) automobilístico. Sua peleja, a partir de então, é descobrir as razões para o acontecimento, bem como quem teriam sido as pessoas envolvidas nele. Ele não tem qualquer relação com aquele suposto acidente, mas toma para si o desejo de saber a verdade, munido de um intrépido espírito investigativo, que é a deixa para uma das interpretações mais maravilhosas de Travolta, comparável apenas ao seu Vincent Vega de Pulp fiction (idem, 1994).


Infelizmente, a obra não é uma das mais lembradas da carreira de seus envolvidos, o que caracteriza um desperdício. O filme tem momentos de brilho resplandecente, unindo uma proveitosa homenagem aos filmes de segunda categoria e trazendo todo um clima de dubiedade e nuvens negras que pairam sobre os caracteres e os pensamentos de seus personagens. O tom irresistível de filme noir acompanha a percepção do espectador e o torna uma espécie de detetive cúmplice de Jack. Assim como ele, somos impelidos pela curiosidade um tanto macabra de desvendar o crime, caminhando com o protagonista pelas sombras espessas que o envolvem. O flerte com a filmografia de Hitchcock também se dá pelo fato de Um tiro na noite apresentar o homem errado no lugar errado, uma recorrência na obra do saudoso Mestre do Suspense, encontrada em títulos como Janela indiscreta (Rear window, 1954). Ainda assim, Jack se mete a besta como investigador, e as pistas que vai encontrando só aumentam sua sede de descoberta.

Um tiro na noite também traz algumas fatias de humor negro subscrito, que se traduz basicamente na ironia com alguns ditames da indústria cinematográfica, que compõem um atrativo à parte do longa. É como se De Palma nos tomasse pela mão e nos convidasse a um mergulho profundo no universo do fazer filmes e, de quebra, nos brindasse com o testemunho de uma saga particular de desbravamento de um crime. Nesse jogo instigante, os grandes beneficiados somos nós mesmos, embevecidos com sua febulosa arquitetura cênica e sua direção exemplar, sem falar na fotografia do brilhante Vilmos Zsigmond, um húngaro que entende do riscado e que viria a colaborar de modo igualmente maravilhoso com Woody Allen em O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007). A trilha sonora de Pino Donaggio, o mesmo veneziano que cuidou desse departamento em Carrie, a estranha (Carrie, 1976), também do diretor, é outro detalhe hipnótico dessa bela costura de referências a clássicos e a diretores atemporais e inesquecíveis – além de Hitchcock, Antonioni também é evocado nas correlações imagéticas e especulares - , sintetizadoras da notória capacidade de diálogo de que De Palma dispõe.

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