8 de set. de 2011

A missão do gerente de recursos humanos: uma viagem além do óbvio

São poucos os filmes orientais que conseguem atravessar o hemisfério e alcançar o outro lado do globo, o que significa sua exibição em circuito comercial. Felizmente, alguns concluem esse percurso e nos brindam com boas histórias, diretores competentes e atores inspirados. A missão do gerente de recursos humanos (The human resources manager, 2010) vem se somar a essas poucas produções, com sua trama salpicada de fatos inusitados protagonizada por um homem totalmente cativante. Sem jamais ser nomeado, e interpretado por Mark Ivanir, o personagem, como indica o título, detém o cargo de gerência de recursos humanos de uma panificadora em Israel. O fato que altera a sua rotina de casa para o trabalho, e vice-versa, é a notícia do assassinato de uma ex-funcionária do estabelecimento em um ataque terrorista. Por mais que não haja mais nenhuma responsabilidade concreta da pequena empresa sobre a jovem morta, a Polícia encontra com ela alguns papéis que indicam um certo vínculo seu com a panificadora. Com isso, o gerente terá de viajar até a distante Romênia, a fim de repatriar o corpo daquela que é uma imigrante estrangeira.



A arquitetura dramática erigida por Eran Riklis é mais uma prova de seu cinema que foge do óbvio, e se vale de conflitos particulares para tratar de uma realidade muito maior, que pode, até mesmo, assumir contornos globais, a exemplo do que ele fez em seus dois longas anteriores, A noiva síria (The syrian bride, 2004) e Lemon tree (idem, 2007). Em ambos os trabalhos, um fato simples ganha contornos inesperados, quase bizarros, compondo um estilo particular do diretor e servindo como ponto de partida para discussões interessantes sobre os rumos que a humanidade vem tomando, sobre a necessidade de um contato mais cálido entre as pessoas, sobre como a burocracia pode transformar procedimentos simples em tarefas hercúleas, entre tantos outros tópicos. O périplo do gerente começa quando ninguém além dele pode assumir a função de levar a jovem de volta para sua terra natal. Para além dessa demanda, que tem de ser resolvida para que o nome da panificadora não saia arranhado, ele tem de se acertar com a ex-mulher, e lidar com o crescimento de sua filha. Ela está crescendo, e ele quase não tem podido participar desse desenvolvimento por estar preso a um emprego que odeia.

Indo na contramão de sua vontade, ele empreende a viagem à Romênia, mas uma série de necessidades que vão surgindo para que o corpo seja transferido transformam o que era relativamente simples em uma jornada estapafúrdia. O espectador é convidado a participar desse percurso, e A missão do gerente de recursos humanos acaba se mostrando como um road movie muito afetivo e interessante. Riklis reafirma a sua competência para falar sobre gente ordinária que tem de matar um leão por dia, vencendo os desafios que a vida lhe vai impondo. Com isso, também vem se firmando como figura de proa do cinema israelense contemporâneo. Não há grandes novidades em termo de conteúdo no filme, mas sua abordagem é tão cativante e sincera que não demora para que se desenvolva uma relação de cumplicidade entre o público e o personagem, que aparece em cena o tempo todo, sem qualquer segundo de descanso. Somos levados àquela jornada pelo seu olhar, como se ele narrasse silenciosamente o que vai vivendo. A ele se une uma galeria de personagens igualmente carismáticos, mas, nem por isso, fáceis de se lidar. É o caso do filho adolescente da jovem morta, que insiste em não acreditar no falecimento de sua mãe. O relacionamento que o gerente desenvolve com o garoto acaba sendo, pela força das circunstâncias, mais próximo do que com a sua própria filha.

Não é exatamente necessário ter tido um contato anterior com a filmografia de Eran Riklis para apreciar o filme a contento. Mas é interessante ter uma visão de um de seus dois filmes anteriores, para um cotejo entre elementos que parecem ser recorrentes em sua carreira. A despeito disso, o filme vale por si só, e se configura como uma produção que parte de uma centelha de humanidade para expandi-la e refletir sobre uma luta individual contra instituições de ordem superior. O protagonista não tem autonomia nem mesmo em seu lugar de trabalho, e sua viagem à Romênia é muito mais uma imposição de sua chefe do que uma vontade da sua parte em evitar um incidente diplomático. Entretanto, ele acaba se envolvendo com aquela situação dramática e assumindo a missão como se ela fosse realmente sua. Ele ainda precisa enfrentar a barreira do idioma, já que seu árabe é totalmente diferente do romeno que ele deveria dominar para estabelecer comunicação com a família da ex-funcionária da panificadora. Chega a ser comovente testemunhar a tentativa de diálogo entre ele e a mãe da jovem, mediada pelo homem que o acompanha na jornada e fala as duas línguas. Essa realidade babélica é perfeitamente abarcada pelo roteiro, que evidencia a necessidade de apelo a sentimentos e gestos universais para o alcance de um entendimento mínimo.



Além do filho da jovem, o gerente tem de lidar com um jornalista intratável, que não perde a mínima chance de desmoralizá-lo e, por conseguinte, manchar o nome da empresa que ele representa. O jornalista é a encarnação da imprensa marrom, que não se preocupa com certos traços éticos, mas com a produção e a venda de notícias, custe o que custar. Em alguns momentos, é possível odiar o personagem. Por outro lado, a sua construção, bem como a dos demais, não é unidimensional, o que inclui também o gerente. Ele se mostra corajoso em muitos momentos, mas também tem seus lapsos de covardia e seus rompantes de agressividade, além da fatia de conformismo que o mantém ligado ao cargo que tanto rejeita, fato que explicita logo no começo do filme, ao ser confrontado por sua chefe com a urgência de tomar uma atitude para o caso que norteia toda a duração do longa-metragem. Essa opção por não apresentar personagens chapados é mais um grande acerto de Riklis, que ganha cada vez mais prestígio a cada novo filme. Ele tem uma relação de proximidade com a cultura brasileira, já tendo passado uma temporada no país. Sua grande aposta é no tratamento humano aos seus personagens, criando histórias que falam de uma realidade microscópica, por assim dizer, para alcançar uma escala muito maior. Em A noiva síria e em Lemon tree, ele partiu de um fato de grandes proporções para falar dos seres humanos ali envolvidos. Em A missão do gerente de recursos humanos, ele faz o percurso contrário.

O roteiro foi escrito por Noah Stollman, a partir do livro A mulher de Jerusalém, e tem outros pontos fortes, além dos já comentados. Entre eles, a capacidade de dar um rosto e uma humanidade à questão da imigração em Israel, e de aproximar essa cultura tão diferente do nosso olhar ocidental para a nossa percepção. Normalmente associada apenas ao judaísmo, a nação israelense tem uma vasta multiplicidade, que vale ser conferida, sob pena de queda e (pre)conceitos estereotipados a respeito daquele país e de sua gente, que pode consistir, entre outras coisas, em considerar judeu uma nacionalidade, e não uma religião. O filme também é uma chamada de atenção à necessidade de se tomar as rédeas da própria vida, sintetizada na figura do gerente, cuja ausência de nome só reforça a teoria de um homem que é mais um na multidão com uma tarefa a ser executada. Quando está quase chegando ao seu destino, ele tem de usar um tanque de guerra e, assim, concluir sua odisseia. Esse é o último signo de insolidez que atravessa o seu caminho, e o aproxima de uma conclusão que lhe traz o reencontro com a sua própria humanidade, e com a possibilidade de gerenciar verdadeiramente pessoas, e não somente números.

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