29 de set. de 2011

Reconstrução de um amor: a perseguição a um ideal inalcançável

Exibido nos cinemas brasileiros sem fazer muito alarde, Reconstrução de um amor (Reconstruction, 2003) é um interessante exercício de observação estilizada de um relacionamento amoroso, concebida pela intenção de Christoffer Boe, então um novato na direção. Partindo da premissa mais corriqueira que poderia haver, ele entrega uma instigante anatomia dos meandros de incerteza e descontrole que assolam namoros e casamentos. Seu protagonista é Alex David (Nickolaj Lie Kaas), um fotógrafo que vive uma relação estável com Simone (Maria Bonnevie), até o instante em que ela deixa de ser, em boa parte por causa de seu interesse na figura misteriosa de Aimee (Maria Bonnevie), uma mulher que vê passar um belo dia na rua. Dali a pouco tempo, ele estará enredado em um misterioso e aparentemente complexo e intrincado jogo com contornos de suspense e descentralização.

Boe não está exatamente inventando a roda com Reconstrução de um amor, mas consegue dar a sua história um tratamento quase anticonvencional, conferindo ao romance do protagonista ares de ficção científica e metalinguagem. Em primeira instância, o realizador brinca com a própria construção da narrativa cinematográfica e com as amplas possibilidades que ela pode representar. Os personagens são localizados geograficamente antes de cada sequência - expediente algo descartável, mas válido dentro da proposta - e se movem em cena de acordo com o bel-prazer do tal narrador, por assim dizer. Contudo, mas do que um amor, a reconstrução pela qual o protagonista procura é a de sua vida, partindo, para isso, da resolução de sua demanda amorosa. A dúvida que se levanta com relação a "verdade" por trás daquela incerteza que passa a consumir Alex é amplificada pelo fato de ambas as mulheres que atravessam sua vida serem interpretadas pela mesma atriz. Maria Bonnevie é um escândalo de beleza, e torna totalmente crível o drama do personagem de Kaas, que persegue aquela mulher que lhe parece onírica e, ao mesmo tempo palpável. Simone e Aimee aparecem juntas em uma única sequência, e deixam em aberto se sabem ou não uma da outra. O fato é que este é um filme permeado por elipses e jogos de realidade/interpretação muito produtivo, por não se preocupar em responder às questões que levanta. Cabe ao público embarcar na investigação e concluir o que bem entender.



A grande questão que atravessa o longa-metragem não é o seu tema, mas a maneira através da qual a história é contada. Não há mais nada, dizem alguns, que já não tenha sido apresentado pelo cinema. Resta, então, inovar no estilo de narrativa dentro dessa arte de pouco mais de cem anos. O caos se instaura na vida de Alex a partir do momento em que ele dá vazão ao ímpeto de seguir Aimee, mesmo estando na companhia de sua namorada. O que acontece logo em seguida a essa procura do personagem é uma completa virada em sua vida. De um hora para outra, ele não é mais reconhecido por aqueles que o rodeiam, pessoas com quem sempre conviveu. Surge a indagação que passa a fazer parte do filme: tudo é apenas um jogo ou aquelas pessoas, de fato, não sabem mais quem é Alex? Desde o princípio, porém, um narrador onisciente que faz pequenas intervenções ao longo da trama lança uma dica, dizendo que tudo o que está sendo apresentado nessa história é uma construção. Mesmo assim, garante essa voz, vai doer. A dor pode ser física ou psicológica, mas ela surge, de fato, traduzida na angústia do fotógrafo, ávido de reestabelecer com a namorada e os amigos o contato que parece ter sido rompido.



Pode ser muito incômodo lidar com um filme que não se apressa em fechar raciocínios, mas em abrir portas para a construção do próprio espectador. Mas vale a pena deixar um poucode lado os roteiros excessivamente pasteurizados e se entregar a uma abordagem que valoriza os fatos não filmados, as palavras não ditas e o que se localiza em uma estrutura profunda, acessível apenas por meio de uma leitura inferencial e exegética. Teorias mil são permitidas para se encaixar ao jogo cênico de um filme que, a exemplo de um contemporâneo e compatriota seu, vai além do óbvio no tratamento de esferas nefastas do ser humano: Dogville (idem, 2003). Como no longa de Von Trier, o pano de fundo das cenas é quase ou mais nítido que as cenas em si, e pavimentam um estética da sinceridade parecida com a proposta por Fernando Pessoa ao comparar o poeta ao um fingidor que finge tão bem uma dor que acaba sentindo verdadeiramente. Retoma-se aqui o comentário sobre o aviso do narrador: por mais que se trate de uma ficcionalização, a dor, o incômodo e a angústia podem surgir. Esses sentimentos decorrem de um apego à história, que apresenta traços tão críveis que permitem ao público comprar sua ideia. Outrossim, a temática das relações amorosas sempre terá a adesão dos espectadores, por se tratar de um assunto de comoção geral.

A ilusão do cinema é posta em discussão com o quebra-cabeças de Reconstrução de um amor. Embora seu resultado final não o permita ser considerado uma obra-prima, há grandes méritos na estreia de Boe. Além dos que já foram comentados, ainda há que se destacar o desempenho marcante de Nikolaj Lie Kaas, um dos nomes mais frequentes nos créditos de filmes dinamarqueses, ao lado de Ulrich Thomsen. Ele une uma beleza bruta e exótica com um pulso firme para lidar com a agudeza dos sentimentos de um homem que se vê transtornado, com seu mundo fora do lugar. Seu desespero se desenvolve em uma gradação que o leva a questionar sua própria sanidade, embora ele busque se recusar a acreditar no caos que está vivendo. Nem mesmo sua casa está mais lugar, e sua senhoria chega ao ponto de afirmar que ela nunca existiu. Tudo isso seria consequência da sua traição? Teriam mudado todos por não reconhecê-lo como capaz de comenter esse erro e, então, passaram a não vê-lo mais como alguém familiar? Alex teria ido em busca de um ideal inalcançável de felicidade e completude, uma procura inerente ao ser humano. Entretanto, ela é um fim que justifica os meios por que ele passou?

Todo o filme é atravessado por um recorte surrealista e uma série de elementos que o transformam em uma espécie de noir romântico. A fotografia granulosa que marca várias sequências auxilia a envolver toda a narrativa em uma névoa espessa em que o mistério convida o espectador a desnudá-lo sutilmente. A luz azul, a exemplo do que faz em De olhos bem fechados (Eyes wild shut, 1999), acende a lanterna do sobressalto, como se algo de muito inesperado pudesse acontecer e inundar as cenas de uma atmosfera desoladora, o que também traz à memória um exemplar recente de filme que também se vale do recurso das cenas azuladas para compor um panorama de percurso temporal, o indizível Namorados para sempre (Blue valentine, 2010). Em cada um deles, a predominância dessa cor fria no tratamento da imagem tem um fim distinto, mas os três se aproximam porque a luz inebria e embriaga a percepção do espectador, atordoando seus sentidos. Se jogos interpretativos mais elaborados não forem um grande problema para quem assiste, Reconstrução de um amor pode se revelar uma sessão aflitivamente interessante e memorável.

21 de set. de 2011

A árvore da vida: ultrapassando qualquer fronteira entre cinema e experiência epifânica


O movimento perpétuo pode ser libertador. Entregar-se a um estado de embriaguez pela contemplação também pode se configurar como uma necessidade do ser humano. Há filmes que ultrapassam qualquer limite supostamente estabelecido entre vida, arte e reflexão. Os aparentes dispersos apenas citados são apenas um espécie de súmula do amálgama de sensações que derivam de uma sessão de A árvore da vida (Tree of life, 2010), excelente trabalho de direção propiciado por Terrence Malick. Interpretar o que o cineasta se propôs a dizer talvez seja uma das tarefas mais inúteis dentre aquelas que se podem levantar com relação ao filme. A ele, bastam o sentimento de fruição genuína. Somos embalados e enlevados por uma atmosfera de ensimesmamento que reúne o essencial da condição humana. Em nossos recônditos, questionamo-nos: Quem somos? Para onde vamos? De onde viemos? São indagações basais para qualquer um de nossa espécie e, talvez, delas derivem todas as outras que se vão suscitando em nossa longa, ou curta, ou apenas caminhada sobre esse pedaço de chão que se convencionou chamar Terra.

Com efeito, houve quem dissesse que, a exemplo dos filmes anteriores do realizador, assistir a esse é quase uma experiência litúrgica. De fato, a dimensão espiritual do homem pode ser acionada imediatamente depois de se colocar os olhos nas cenas esplêndidas que se vão sucedendo, sem a menor preocupação – ao menos, aparentemente – de ser didático ou clássico. Subverte-se a narrativa, transgride-se a linearidade em prol de uma circularidade e um grau de complexidade que se assimila à própria existência. Reducionismos e constatações peremptórias se digladiam, mas não mantêm suas forças por muito tempo em A árvore da vida. A vida é poética, tocante, mas também uma eterna fonte de sofrimento. E quem disse que fomos feitos para ser felizes? De onde terá vindo tanta obrigação de felicidade? E a crença em uma posição privilegiada no espaço sideral e, por conseguinte, no Universo? Sua queda se deu há tempos, por indícios e signos diversos, entre os quais: a descoberta de um sistema heliocêntrico e a contribuição epistemológica da psicanálise. Fatos que vieram trazer à tona um homem que é pequeno diante de uma imensidão, que tem de se curvar à superioridade da Terra e de tudo o que nela há, e de um homem que tem natureza partida, fraturada, estilhaçada, cujos cacos são facetas que compõem um mosaico individual.



Podemos inferir respostas para nossas maiores fontes de inquietude na própria natureza. Um olhar para o firmamento talvez possa dirimir parte do desespero e da sofreguidão que se apoderam da alma de todos os que têm a consciência de sua finitude. Ninguém é eterno. Essa certeza pode ser uma grande fonte de tormento e angústia, e se mistura à absoluta ignorância sobre quando será o fim. Basta a cada dia o seu mal. Mesmo os que amamos, partem. Os pais partem antes dos filhos, mas os filhos podem partir antes dos pais. O senhor O’Brien (Brad Pitt) experimenta na pele essa dor em algum momento, e se ressente da inversão do ciclo “natural” da vida. Quem determina ordens? Quem pode presidir irrestritamente sobre um estado de coisas? O domínio de nós mesmos talvez possa não estar em nossas mãos. O pai austero busca a obediência de seus filhos, e exagera ao exigir uma conduta que não pode ser adquirida senão após um longo passar de anos. Conflitos derivam dessa dissonância entre expectativa e realidade. Não há conciliação possível quando se deseja impor aquilo a que o outro não pode, não deve ou não quer se submeter. Nasce desse jogo complexo uma relação dual entre Jack (Sean Penn, em um lampejo da fase adulta do personagem) e seu pai. Dual porque mistura de amor e raiva, de carinho, ternura e ressentimento. Tudo ao mesmo tempo. Estabelecer fronteiras é impossível.



As palavras são esparsas, propositalmente esparsas. Imagens brotam com abundância e exuberância, suplantando a comunicação verbal e evidenciando o abismo que existe entre os sentimentos, os objetos, os acontecimentos e as palavras. Palavras são sempre tentativas, nunca podem recobrir com exatidão o que começa como pensamento. Ciente dessa interdição, o realizador se valeu de uma compilação de códigos imagéticos geradores de êxtase e perturbação. À mais discreta sombra de questionamento, o mundo se ergue imponente, desafiando a pequenez que nos cabe. Viver é um claro enigma, e a ausência de respostas aliada à ampla possibilidade de conexões individuais dadas pelo filme garante sua força e intensidade. Em certo momento, não há pessoas em cena. Os pais e os filhos dão lugar a um mergulho na poeira das estrelas, na vida marinha, nas entranhas da Terra, no pulsar lento de animais que apenas cumprem seu ciclo. A trajetória de perscrutação chega perto do que há de mais basilar na natureza. Chega-se quase ao átomo. A existência é mais fantástica e mais grandiosa do qualquer intenção de classificá-la. Somos frutos um penoso trabalho, de acúmulos diários, de somatórios de momentos, de uma complexidade que é uma das nossas grandes fontes de agonia. A árvore da vida, sem qualquer alarde, pode-nos conduzir a essas constatações, exalando sua essência plena. Nós damos os significados que nos parecem os mais razoáveis, e não temos que depender da ciência das intenções do autor de uma obra para analisá-la. Há um nome por trás do filme, mas o filme fala por si só desde o momento em que começa a ser concebido. Tal qual cada pessoa não tem controle exato sobre o efeito que suas palavras poderão causar em seu interlocutor. Elas partem de um emissor e, uma vez ditas, não se recolhem mais.

Discorrer longamente sobre cada ínterim de um filme tão complexo e, ao mesmo tempo, tão simples, requer um esforço admirável. A árvore da vida é uma fonte inesgotável de possibilidades, que jorra para uma potente coalizão de forças que provoca no espectador um encontro consigo mesmo e com o mundo. A perda da capacidade de observação do simples e do prosaico parece irremediável, mas as imagens belíssimas e a decisão de Malick de abdicar de uma narrativa talvez funcionem como um antídoto para ela. As reverberações sonoras e silenciosas do filmes nos arremessam o tempo todo para uma faceta de princípio da incerteza, fortificando-o como estudo diligente da inabilidade do homem, bem como de sua falibilidade. As fronteiras entre cinema e experiência epifânica, sempre discretas, fundem-se com este exemplar magnânimo de cinema autoral. O filme sorri, questiona, impele e se apresenta sob tantas outras formas que levanta a certeza de se estar sendo confrontado com um caleidoscópio e suas imagens múltiplas e encantadoras. Entretanto, no caso do filme, a dor também pode ser acionada, quando está em presença de elementos que ferem, como a morte e a incomunicabilidade, esta cada vez mais presente hoje. Ao apontar suas lentes para tantos fenômenos naturais e para o mundo pura e simplesmente, Malick nos evoca um estado de contemplação, e uma necessidade de rompimento com uma volatilidade nas relações interpessoais, descartando-se a mediação eletrônica em prol de interações de corpo presente, dentre tantos outros temas que, a depender do público, podem se superpor.

8 de set. de 2011

A missão do gerente de recursos humanos: uma viagem além do óbvio

São poucos os filmes orientais que conseguem atravessar o hemisfério e alcançar o outro lado do globo, o que significa sua exibição em circuito comercial. Felizmente, alguns concluem esse percurso e nos brindam com boas histórias, diretores competentes e atores inspirados. A missão do gerente de recursos humanos (The human resources manager, 2010) vem se somar a essas poucas produções, com sua trama salpicada de fatos inusitados protagonizada por um homem totalmente cativante. Sem jamais ser nomeado, e interpretado por Mark Ivanir, o personagem, como indica o título, detém o cargo de gerência de recursos humanos de uma panificadora em Israel. O fato que altera a sua rotina de casa para o trabalho, e vice-versa, é a notícia do assassinato de uma ex-funcionária do estabelecimento em um ataque terrorista. Por mais que não haja mais nenhuma responsabilidade concreta da pequena empresa sobre a jovem morta, a Polícia encontra com ela alguns papéis que indicam um certo vínculo seu com a panificadora. Com isso, o gerente terá de viajar até a distante Romênia, a fim de repatriar o corpo daquela que é uma imigrante estrangeira.



A arquitetura dramática erigida por Eran Riklis é mais uma prova de seu cinema que foge do óbvio, e se vale de conflitos particulares para tratar de uma realidade muito maior, que pode, até mesmo, assumir contornos globais, a exemplo do que ele fez em seus dois longas anteriores, A noiva síria (The syrian bride, 2004) e Lemon tree (idem, 2007). Em ambos os trabalhos, um fato simples ganha contornos inesperados, quase bizarros, compondo um estilo particular do diretor e servindo como ponto de partida para discussões interessantes sobre os rumos que a humanidade vem tomando, sobre a necessidade de um contato mais cálido entre as pessoas, sobre como a burocracia pode transformar procedimentos simples em tarefas hercúleas, entre tantos outros tópicos. O périplo do gerente começa quando ninguém além dele pode assumir a função de levar a jovem de volta para sua terra natal. Para além dessa demanda, que tem de ser resolvida para que o nome da panificadora não saia arranhado, ele tem de se acertar com a ex-mulher, e lidar com o crescimento de sua filha. Ela está crescendo, e ele quase não tem podido participar desse desenvolvimento por estar preso a um emprego que odeia.

Indo na contramão de sua vontade, ele empreende a viagem à Romênia, mas uma série de necessidades que vão surgindo para que o corpo seja transferido transformam o que era relativamente simples em uma jornada estapafúrdia. O espectador é convidado a participar desse percurso, e A missão do gerente de recursos humanos acaba se mostrando como um road movie muito afetivo e interessante. Riklis reafirma a sua competência para falar sobre gente ordinária que tem de matar um leão por dia, vencendo os desafios que a vida lhe vai impondo. Com isso, também vem se firmando como figura de proa do cinema israelense contemporâneo. Não há grandes novidades em termo de conteúdo no filme, mas sua abordagem é tão cativante e sincera que não demora para que se desenvolva uma relação de cumplicidade entre o público e o personagem, que aparece em cena o tempo todo, sem qualquer segundo de descanso. Somos levados àquela jornada pelo seu olhar, como se ele narrasse silenciosamente o que vai vivendo. A ele se une uma galeria de personagens igualmente carismáticos, mas, nem por isso, fáceis de se lidar. É o caso do filho adolescente da jovem morta, que insiste em não acreditar no falecimento de sua mãe. O relacionamento que o gerente desenvolve com o garoto acaba sendo, pela força das circunstâncias, mais próximo do que com a sua própria filha.

Não é exatamente necessário ter tido um contato anterior com a filmografia de Eran Riklis para apreciar o filme a contento. Mas é interessante ter uma visão de um de seus dois filmes anteriores, para um cotejo entre elementos que parecem ser recorrentes em sua carreira. A despeito disso, o filme vale por si só, e se configura como uma produção que parte de uma centelha de humanidade para expandi-la e refletir sobre uma luta individual contra instituições de ordem superior. O protagonista não tem autonomia nem mesmo em seu lugar de trabalho, e sua viagem à Romênia é muito mais uma imposição de sua chefe do que uma vontade da sua parte em evitar um incidente diplomático. Entretanto, ele acaba se envolvendo com aquela situação dramática e assumindo a missão como se ela fosse realmente sua. Ele ainda precisa enfrentar a barreira do idioma, já que seu árabe é totalmente diferente do romeno que ele deveria dominar para estabelecer comunicação com a família da ex-funcionária da panificadora. Chega a ser comovente testemunhar a tentativa de diálogo entre ele e a mãe da jovem, mediada pelo homem que o acompanha na jornada e fala as duas línguas. Essa realidade babélica é perfeitamente abarcada pelo roteiro, que evidencia a necessidade de apelo a sentimentos e gestos universais para o alcance de um entendimento mínimo.



Além do filho da jovem, o gerente tem de lidar com um jornalista intratável, que não perde a mínima chance de desmoralizá-lo e, por conseguinte, manchar o nome da empresa que ele representa. O jornalista é a encarnação da imprensa marrom, que não se preocupa com certos traços éticos, mas com a produção e a venda de notícias, custe o que custar. Em alguns momentos, é possível odiar o personagem. Por outro lado, a sua construção, bem como a dos demais, não é unidimensional, o que inclui também o gerente. Ele se mostra corajoso em muitos momentos, mas também tem seus lapsos de covardia e seus rompantes de agressividade, além da fatia de conformismo que o mantém ligado ao cargo que tanto rejeita, fato que explicita logo no começo do filme, ao ser confrontado por sua chefe com a urgência de tomar uma atitude para o caso que norteia toda a duração do longa-metragem. Essa opção por não apresentar personagens chapados é mais um grande acerto de Riklis, que ganha cada vez mais prestígio a cada novo filme. Ele tem uma relação de proximidade com a cultura brasileira, já tendo passado uma temporada no país. Sua grande aposta é no tratamento humano aos seus personagens, criando histórias que falam de uma realidade microscópica, por assim dizer, para alcançar uma escala muito maior. Em A noiva síria e em Lemon tree, ele partiu de um fato de grandes proporções para falar dos seres humanos ali envolvidos. Em A missão do gerente de recursos humanos, ele faz o percurso contrário.

O roteiro foi escrito por Noah Stollman, a partir do livro A mulher de Jerusalém, e tem outros pontos fortes, além dos já comentados. Entre eles, a capacidade de dar um rosto e uma humanidade à questão da imigração em Israel, e de aproximar essa cultura tão diferente do nosso olhar ocidental para a nossa percepção. Normalmente associada apenas ao judaísmo, a nação israelense tem uma vasta multiplicidade, que vale ser conferida, sob pena de queda e (pre)conceitos estereotipados a respeito daquele país e de sua gente, que pode consistir, entre outras coisas, em considerar judeu uma nacionalidade, e não uma religião. O filme também é uma chamada de atenção à necessidade de se tomar as rédeas da própria vida, sintetizada na figura do gerente, cuja ausência de nome só reforça a teoria de um homem que é mais um na multidão com uma tarefa a ser executada. Quando está quase chegando ao seu destino, ele tem de usar um tanque de guerra e, assim, concluir sua odisseia. Esse é o último signo de insolidez que atravessa o seu caminho, e o aproxima de uma conclusão que lhe traz o reencontro com a sua própria humanidade, e com a possibilidade de gerenciar verdadeiramente pessoas, e não somente números.

1 de set. de 2011

O prevalecimento da comédia física em Bananas


Depois de conhecer a sinopse de Bananas (idem, 1971), fica muito mais fácil entender a motivação que levou ao seu título. O segundo longa-metragem de Woody Allen como realizador é uma grande galhofa, ao propor uma reflexão algo crítica sobre a situação de submissão de certos países da América Central a regimes ditatoriais simbolizados por figuras de contornos bizarros. Logo na primeira sequência do filme, o espectador entra em contato com a verve altamente sarcástica que o diretor então iniciante imprimiu ao seu trabalho. Um repórter de televisão cobre uma manifestação popular, durante a qual ocorre o assassinato de um ditador. Agindo com total frieza, o repórter faz de tudo para passar pela multidão de revoltosos e conseguir uma declaração daquele homem em estado agonizante. Os ares surreais que circundam a cena são o primeiro indício do que virá dali em diante, e consumirá 81 minutos do tempo de quem estiver do outro lado da tela acompanhando o filme, que tem seus momentos de altos e alguns poucos baixos. O saldo final, portanto, está muito mais perto de ser positivo.

Em seguida a essa abertura hilária pelo que tem de inacreditável, somos apresentados a Fielding Mellish (Allen), um homem com uma profissão também aberrante. Ele é testador de produtos que estão em estudos para serem lançados no mercado, e sua rotina de trabalho inclui ser cobaia das invenções mais estapafúrdias que se possa imaginar. Esse dado de composição do personagem abra a possibilidade do exercício da comédia física, um detalhe que atravessa o filme como um todo. Então com 36 anos e com muito mais fios de cabelo do que atualmente, Allen tinha mais disposição para escrever e interpretar cenas que exigiam de seu comprometimento corporal, como a que mostra seu personagem testando um produto que oferece a possibilidade de atividade física em pleno expediente, seja nas gavetas da mesa, seja no momento de atender o telefone. As traquitanas que Fielding auxilia a comercializar são uma espécie de correspondente distante dos tipos inacreditáveis que Danny Rose (também Allen) apadrinha em Broadway Danny Rose (idem, 1984), como se o segundo pudesse ser considerado uma citação indireta do primeiro. Ademais, há uma forte presença do humor pantomímico, que consiste no largo emprego de expressões faciais e gestuais que causam o riso, algo que Charles Chaplin consagrou a ponto de seu sobrenome ter se derivado sufixalmente e se tornado adjetivo para esse tipo de humor.

Bananas se demonstra um bom filme por sua conjugação eficiente de comédia romântica com sátira política, temperadas com o genuíno humor do cineasta, que ainda galgava os primeiros degraus de sua extensa e profícua carreira, que já contabiliza mais de quarenta filmes. O lado cômico-romântico do filme fica por conta da paixão de Fielding por Nancy (Louise Lasser), uma ativista política que bate à sua porta colhendo assinaturas para um abaixo-assinado contra os abusos que vem sendo cometidos na pequena República de San Marcos, o país que aparece logo no começo do filme, na comentada cena da reportagem. A aparição da moça em seu apartamento é a deixa para que o personagem a convide para entrar, e ali nasce um romance fugaz e desastrado entre eles, como tantos outros que Allen nos apresentaria posteriormente, em títulos cujos protagonistas também são vividos por ele e os pares românticos são vividos por Diane Keaton ou Mia Farrow, principalmente. Lasser empresta sua beleza adorável para Nancy e surge na tela como um rascunho bem feito de Farrow ou, em outras palavras, como uma precursora da então futura parceira de Allen em tantos trabalhos subsequentes. Nancy se sente atraída por Fielding por sua simpatia e desprendimento, mas sente que necessita de algo mais, que há uma ausência nele que precisa ser suprida. É por causa dessa paixonite que o protagonista vai parar na republiqueta centro-americana, onde acabará assumindo a presidência e conquistando um sucesso involuntário, em mais uma das ironias bem articuladas do diretor. A associação com as chamadas “repúblicas das bananas”, que, muitas vezes, incluem o Brasil, são quase imediatas, assim como com o governo cubano, que também está sintetizado na figura de Fielding, que vai se juntar ao revolucionários da ilha para impressionar a garota que lhe trouxe interesse.



O roteiro de Bananas foi escrito em parceria com Mickey Rose, algo que o diretor deixaria de fazer posteriormente, concebendo seus textos sem qualquer outra pessoa para dividir o trabalho. Rose também roteirizou o primeiro filme de Allen, Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969), bem como elaborou as falas da redublagem de O que há, tigresa? (What’s up, tiger Lily, 1966), também “dirigida” pelo cineasta – se é que esse é o termo mais adequado para o que ele fez. Já faz alguns anos que Rose não escreve, e a maior parte de seus trabalhos foi pensada para a televisão, onde ele se demonstrou bastante produtivo. Sua junção com Allen em Bananas permite observar o quanto o diretor já poderia revelar de suas próprias características nesse filme, e que viria a expandir e refinar com o passar dos anos em uma obra que pode ser classficada, com toda a razão, como monumental. Ao longo de tantas décadas, seu nome se tornou grife, uma espécie de selo de garantia de filmes criativos e pensantes, e vários atores já puderam experimentar participar de seus trabalhos. No filme em questão, sobre espaço para um ainda jovem e semidesconhecido Sylvester Stallone, que faz ponta como um arruaceiro que, acompanhado de um amigo, intimidando Fielding.

Outros elementos recorrentes da carreira do diretor também aparecem em Bananas, como a figura do sujeito inseguro e inábil, que mete os pés pelas mãos em conquistas malfadadas e tem um olhar algo obtuso sobre o mundo. O longa-metragem não é um de seus mais inspirados, por soar um pouco redundante em algumas sequências, mas também já apresenta ao público o excelente timing cômico do diretor, que extrai graça e risadas de situações que beiram o absurdo, gerando comentários pertinentes que encaixam esse trabalho na esfera do nonsense. Há também um certo componente de ingenuidade no filme que lhe confere o passaporte para figurar entre os mais despretensiosos do diretor, que ele foi deixando de lado posteriormente, e retomou poucas vezes, como em O escorpião de jade (The cursion of jade scorpion, 2001) e Scoop – O grande furo (Scoop, 2006), que também são seus filmes recentes mais subestimados. Allen é um diretor que demonstra, a cada nova produção, que está longe de se poder circunscrever a um arco de tempo restrito. Bananas comprova sua capacidade de ser atemporal, já que criticar os desmandos de ditadores que se consideram embaixadores de Deus na Terra, infelizmente, não ficou datado. E se, depois, ele enveredaria pelos caminhos das constatações ácidas ou agridoces da natureza humana, intimista ou tragicômica, aqui ele já trazia ao público fartas doses de humor associado a bom conteúdo, saudando seus entusiastas em potencial.