2 de dez. de 2010

"Luz silenciosa", uma história de autonegação com delicados contornos

O mexicano Carlos Reygadas é o responsável por trazer ao público Luz silenciosa. Ainda pouco conhecido em solo brasileiro, o diretor não está debutando no celuloide com esse filme. Na verdade, esse é o terceiro de sua filmografia, que se iniciou com Japón (2002). Depois veio Batalha no céu (2005), e então Reygadas dirigiu seu mais recente filme já lançado. Por sua abordagem de temas em que, a maior parte do tempo, prescinde das palavras, o diretor divide opiniões, e exige uma certa capacidade de concetração do espectador que decide acompanhar um filme seu.

Em Luz silenciosa (Stellet licht, 2007), as lentes de Reygadas estão sobre Johan (Cornelio Wall), um homem simples que habita uma comunidade de imigrantes europeus em pleno México, nos dias atuais. Ele é um menonita, ou seja, um membro de uma religião que preconiza a rejeição total ao
progresso. Tudo aquilo que representa avanço tecnológico é repelido pelos menonitas, que cultivam uma vida que parece estar inserida em uma épca distante. E é exatamente essa a primeira impressão que se tem ao conhecer o lugar onde o protagonista vive : um ambiente bucólico, onde a paz parece inabalável, e em que cada habitante mantém seu semblante resignado em tudo que faz. Mas a comunidade de Johan já se mostra mais flexível, aceitando o uso do telefone e até do carro. A língua falada pelos moradores da região também é um diferencial : eles se comunicam em um dialeto alemão, que é quase ininteligível para quem não tem qualquer conhecimento do idioma
standard. Naquele cenário em que a vida parece demorar muito mais para passar, os conflitos internos de Johan serão o motor da narrativa, na qual a passagem do tempo, em sua liquidez, transformará o cotidiano dos personagens.
A qualidade da fotografia de Luz silenciosa merece um parágrafo parentético. Com um visual arrebatador, o filme começa com a contemplação de um amanhecer praticamente em tempo real. Reygadas posicionou a câmera para um campo aberto, com algumas poucas árvores, mais especificamente para o seu horizonte, e flagrou os efeitos deslumbrantes da luz do céu sobre a paisagem da terra. Apenas com o uso desse recurso, o realizador já encaminha seu público para a percepção de que este é um filme bastante sinestésico, que exige que seja sentido, e não apenas observado. Esse mesmo mecanismo é empregado no final do filme, só que de modo inverso : é o anoitecer, lento e lacerador, que é focalizado pacientemente dessa vez. Entre o surgir e o desaparecer da luz, entretanto, vários pequenos acontecimentos vão se dando diante dos olhos do espectador, e todos eles são atravessados pela luz impactante da fotografia, cuja referência está inclusive nos títulos original e em português do longa-metragem.

Nada de surpreendente acontece na vida de Johan, a não ser a paixão que ele passa a sentir e nutrir por uma mulher de sua comunidade, mesmo sendo casado. Esse sentimento, que se aloja em seu peito inevitavelmente, como parece demonstrar a construção do personagem, trará consequências dramáticas para a sua vida. Como menonita, o desenvolvimento de uma paixão por uma mulher que não seja a sua esposa deixa-o profundamente perturbado, levando-o a tentativas inúteis de execrar qualquer manifestação dessa vontade de sua carne. Aqui, cabe destacar que o interesse de Carlos Reygadas pela questão religiosa volta a ser demonstrado, pelo que ele aborda o aspecto pela segunda vez – já havia feito isso em Batalha no céu, exibido no Festival do Rio de 2005. O impedimento moral e religioso vão refrear o tempo todo o desejo de Johan. Ou quase o tempo todo, já que, em dado momento da trama, toda a volúpia concentrada nele vem à tona. Uma volúpia um tanto contida, todavia, já que a cena de sexo entre o personagem e sua amante é filmada com comedimento e se tranforma em uma sequência quase asséptica, por assim dizer.
Um dado curioso a respeito do filme é que seu ator principal, Cornelio Wall, é um menonita de verdade. Isso decerto ajuda na construção de seu personagem, e dilui, em alguma instância, a fronteira entre realidade e filmagem, tornando-as quase limítrofes. Depois de rodar o filme como Johan, Wall declarou que é estranho se ver retratado em um filme, uma afirmativa que corrobora a defesa do cinema como uma excelente fonte especular, em que a identificação pode ser narcísica ou de baixa autoestima. Como protagonista, o personagem é um homem reservado, que abre mão de muitas palavras para dialogar com as pessoas ao seu redor, preferindo conversas ligeiras e muito resignadas.
A maneira com que Reygadas encaminha sua narrativa de Luz silenciosa torna o filme um parente próximo de uma obra produzida no hemisfério oriental : Amor à flor da pele (2000). Em ambos os filmes é notável o apreço dos realizadores por flagrar a passagem do tempo, demonstrada com um enredo que se prende mais no correr das horas e dos dias do que propriamente nas angústias existenciais do personagem. Os filmes se reclamam por conta de sua porção de retrato de amores sublimados, que sucumbem a impedimentos de ordem superior àquela a qual os amantes estão submetidos. É uma tarefa difícil essa que foi empreendida pelos diretores, pois o tempo, em sua natureza intangível, não se deixa capturar. O que surge na tela são seus efeitos, que podem ser benéficos ou devastadores.
O sofrimento que permeia a caminhada de Johan já está presente desde o início do filme. Em uma das primeiras cenas, que mostra a refeição da família do protagonista, observa-se a agonia discreta do personagem, da qual sua esposa tem pleno conhecimento, levando-a a oferecer toda a sua solidariedade ao marido, que não sabe o que fazer para lidar melhor com aquele sentimento. Depois que as crianças se vão, para mais um dia de estudos, ele desata a chorar copiosamente. Johan contou à esposa o que estava se passando em seu coração desde que a paixão começou a tomar forma, e a sua maior busca é por mantar a racionalidade diante desse sentimento, o que logo se mostra complicado para o personagem.
Reygadas não se esforça para contagiar o seu público com aquele drama, mas o seu caráter universal é a grande contribuição para que ele sirva como um reflexo para a plateia. Não é tão difícil imaginar como se sente uma pessoa que se sente dividida entre a vida de casado, com todos os ônus e bônus que ela traz, e a paixão persistente por uma outra mulher, à qual o protagonista parece estar fadado. Toda a história desse sofrimento contido é narrada em um ritmo lento, como já foi dito, mas nunca claudicante. A trajetória de Johan é permeada por alguns momentos marcadamente carregados de simbolismos, como a cena do banho com os filhos, em que seu pudor em manter a verdade oculta para eles se concretiza no cuidado com que ele lava as costas da filha. Aquele zelo pode ser lido como uma preocupação em manter as crianças “limpas” da verdade “suja” que ele carrega, e a cena ocupa um bom tempo na tela. Quando Luz silenciosa chega ao seu final, com o já comentado anoitecer flagrado quase em sua completude, o sentimento que mais define o estado do espectador é um só: desalento.

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